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A (falta de)
autonomia nas crianças
18 set 2019 11:19
crónica de
O conforto que os pais julgam estar a dar às suas crias tem um
preço, que é o de não desenvolver o pensamento crítico e a capacidade de
resolver problemas por eles próprios. Um artigo de opinião de Luísa Agante,
professora de marketing na Faculdade de Economia do Porto e especialista em
comportamento do consumidor infantil e juvenil.
Direitos reservados
Imaginem a cena seguinte:
estamos no início do ano letivo e é necessário inscrever os alunos no primeiro
ano. As setas indicam onde ficam os serviços administrativos e os novos alunos,
acompanhados dos seus pais, vão perguntando informações e escolhem em conjunto
as aulas. Os novos alunos vão ouvindo os seus pais a colocar questões que eles
nunca se lembrariam de perguntar.
É esta a
realidade do novo ano letivo, mas não estamos a falar do 1º ano do 1º ciclo do
ensino básico, mas sim do 1º ano de entrada na Universidade. Ou seja, pessoas
que supostamente são adultas com 18 anos precisam da ajuda dos pais para se
inscreverem numa faculdade. Há uns anos atrás seria impensável. Hoje é a norma
e já se começa a ver o mesmo fenómeno nos mestrados. Aliás, até quando as
supostas "crianças" vão de Erasmus, muitos pais as seguem para ajudar
na integração nos primeiros tempos...
Como foi
possível chegarmos a este nível? O que se andou a fazer nos anos anteriores? Ou
a questão essencial deste artigo, onde está e como é desenvolvida a autonomia
das crianças hoje em dia?
Alguns pais
estão a ler este artigo e a pensar "mas qual é o problema? Acho natural
acompanhar o meu filho(a) na faculdade, mostra o meu interesse e sei que ele(a)
fica mais confortável". Pois é, mas esse conforto tem um preço, que é o de
não desenvolver o pensamento crítico e a capacidade de resolver problemas por
eles próprios.
NESTE MUNDO CRIADO PELOS PAIS, CHEIO DE
PERIGOS E MEDOS, AS CRIANÇAS VÃO CRESCENDO NUMA REDOMA, RESGUARDADAS DO PERIGO,
PROTEGIDAS, OU SEJA, SEM SABER O QUE É TER AUTONOMIA E COMO ELA SE CONQUISTA
Muitas vezes
temos crianças e jovens que nunca andaram de autocarro. Aliás é natural
ouvirem-se os pais dizer que "apanha um Uber", e que é muito prático.
Ouvimos dizer que os transportes públicos não são práticos pois não permitem
cumprir a agenda dos seus filhos... Não será a agenda que está demasiado
sobrecarregada?
Ainda há
pouco tempo saíram os resultados de um estudo onde se dizia que Portugal era dos países da OCDE onde as crianças tinham
mais horas letivas, ou seja, passavam muito tempo na escola. Pois
para além da escola hoje temos ainda toda a panóplia de atividades que uma
criança tem que ter... Música para desenvolver o raciocínio matemático, ballet,
futebol, artes marciais, as línguas a partir dos três anos (porque senão nunca mais vai
conseguir ser fluente na língua, o que é essencial para uma carreira
internacional)... Uma estafa, uma canseira.
Andar de bicicleta
na rua ou ir para estas atividades de bicicleta? Nem pensar que é um perigo
andar na estrada. Ir a pé sozinho(a)? Credo, nem quero pensar nisso pois pode
ser raptado(a)...
E
neste mundo criado pelos pais cheio de perigos e medos, as crianças vão crescendo
numa redoma, resguardadas do perigo, protegidas, ou seja, sem saber o que é ter
autonomia e como ela se conquista. Sim, o mundo mudou e pode ter mais alguns
perigos, mas o aumento da proteção dos pais foi mais que proporcional ao
aumento da insegurança no mundo. Há hoje uma histeria, uma paranoia com a sobre
proteção que está a gerar gerações de ineptos. Que depois chegam ao local de
trabalho e esperam que lhes sejam dadas indicações do que devem fazer.
Por isso, se
é pai/mãe e tem crianças ou jovens, tente de uma vez por todas perceber que os
seus medos, a sua proteção dos seus filhos pode ser contraproducente. Eles vão
cair, eles vão-se magoar, com toda a certeza, mas é assim que se cresce, é
assim que se fazem homens e mulheres que sabem como resolver os seus problemas
e ultrapassar dificuldades.
Deixo por isso alguns exemplos de
ideias para aumentar a autonomia das crianças:
Autonomia Financeira: Dê ao seu
filho(a) uma semanada (nos mais novos, até ao 6º ano) ou uma mesada (nos mais
velhos, a partir dos 12 anos) para que ele possa gerir o seu dinheiro. Mas faça
com que a semanada/mesada não seja apenas para os gastos supérfluos. Faça com
que a criança/jovem possa tomar decisões de consumo no seu dia a dia. Por
exemplo, ter um orçamento para os lanches e almoços na escola. Assim, se hoje
escolhe ir almoçar fora com os amigos, amanhã já sabe que vai ter que levar
almoço de casa ou encontrar uma solução mais barata. Vai passar fome alguns
dias? Se calhar sim, mas vai aprender melhor do que se tiver sempre a quem
recorrer para lhe dar o dinheiro.
Autonomia nas Deslocações: Escolha um
trajeto habitual que o seu filho(a) possa fazer sozinho ou
com outras crianças da sua idade. Pode implicar apanhar um transporte público,
ir a pé ou de bicicleta/trotinete. Claro que isto depende das rotinas que forem
criadas e por isso convém escolher atividades que geograficamente sejam
acessíveis para a criança. Se não for possível no trajeto casa/escola, pelo
menos numa atividade ele(a) deve ter autonomia no percurso e perceber como se
pode desenrascar sozinho(a).
Autonomia nas Escolhas
Alimentares: E porque não deixá-los escolher a quantidade que querem
colocar no prato? Muitas vezes ouço os pais a dizer “vá, come o que tens no
prato” ou “come pelo menos a carne”, etc. Ou outras vezes observo crianças que
pedem doses grandes, ou que se servem de grandes quantidades, e depois deixam
imensa comida no prato. Um desperdício alimentar diário ou quase diário. Por
isso, porque não dizer à criança/jovem, que tem que comer alimentos de
determinado tipo (ex: ser obrigatório servir-se de carne, arroz e salada), mas
deixar a criança escolher a parte da carne que quer, a quantidade de arroz que
quer, e que partes da salada quer. Com essa autonomia, vem a responsabilidade,
ou seja, por um lado, depois terá que comer tudo o que tiver colocado no prato,
e por outro lado, fica a saber quando é a hora da refeição seguinte, ou seja,
não vai comer pouco ao almoço, para se encher de bolachas passado uma hora.
Não estamos
a falar de experiências científicas ou muito difíceis. São pequenas coisas, mas
que podem fazer grandes diferenças no futuro. Aos poucos vamos acrescentando
tarefas de autonomia e será um prazer observar os adultos em que eles se
tornarão.
Luísa Agante é professora de marketing na Faculdade de
Economia do Porto e especialista em comportamento do consumidor infantil e
juvenil. Tem uma página no Facebook chamada "Agante & Kids" na
qual publica e partilha regularmente conteúdos informativos sobre
comportamento infantil para pais e educadores.