"As
tecnologias da comunicação originaram uma capacidade de entrar na nossa mente,
monopolizar a atenção e de intervir nos nossos juízos"
13.11.2017 às 14h27
Luis Barra
Leia ou releia a entrevista à VISÃO do neurologista e neurocientista
António Damásio
Jornalista
O novo livro de António Damásio,
73 anos, tem uma epígrafe de Rei Lear: “Eu vejo sentindo.” O neurocientista é um
admirador confesso de Shakespeare e, em A Estranha Ordem das Coisas (primeira
edição mundial lançada esta semana em Portugal pela Temas e Debates), o que faz
é provar que a ação criadora dos sentimentos é anterior aos seres humanos.
Transcrição de uma conversa-lição de vida, no Hotel Ritz, durante a sua curta
passagem por Lisboa. Damásio fala baixinho, mas o que diz merece ser proclamado
aos sete ventos.
Fiquei tão entusiasmada com o seu livro que disse logo
aos meus amigos e à minha família para o lerem. Isto é uma reação emotiva?
Se quer que lhe diga, em primeiro lugar, parece-me que é uma reação
inteligente [risos]. Depois, antes de mais nada, é uma reação intelectual:
gostou do livro porque lhe pareceu ter certas qualidades. E foram essas
qualidades que lhe despertaram uma emoção de gosto e de prazer.
É isto que se passa com as emoções: começam
com um determinado facto, há um objeto (uma cor, um som, um poema, um livro, um
filme, uma pessoa…) que, por ter certas qualidades e um determinado esquema,
provoca uma emoção. Tudo isto também pode acontecer com uma emoção desagradável
se se der o caso de encontrar uma ideia com aspetos que lhe vão provocar o
desagrado. A ordem é sempre esta, é assim que marcha a vida afetiva. A seguir a
essa reação emocional vem um sentimento: um estado mental que, no fundo,
corresponde à experiência da reação emocional que acabou de ter.
Tivemos séculos de História em que os afetos foram
considerados dispensáveis e até prejudiciais. A melhor decisão é aquela que
concilia a razão e a emoção?
Sim, essa é uma das coisas que defendo. A outra coisa que defendo é que,
por norma, quando as pessoas olham para o aspeto dispensável das emoções, estão
a pensar em emoções negativas. Isto é uma maneira extremamente estreita, e não
particularmente inteligente, de olhar para as emoções. Como tudo o que faz
parte da nossa vida afetiva, as emoções têm um lado positivo, agradável, recompensador,
embora tenham também um lado negativo, punitivo, associado à dor e ao
sofrimento. Repare na situação sociopolítica dos últimos anos: há sempre um
protesto, uma atitude de zanga e de reivindicação, uma inabilidade em conciliar
interesses. Fala-se no nacionalismo, que é uma reação emocional, mas a verdade
é que também podiam existir reações de cooperação, de compaixão, de admiração,
de altruísmo, de amor. E todas estas reações são também reações emocionais.
A palavra emoção tem má reputação por estar associada
àquilo que é negativo?
Quando se pensa em emoção, pensa-se em pessoas que não colaboram, que estão
zangadas, que têm ciúmes, ódios, invejas. O que é verdade é que existe este
estado constante de motivação pelos sentimentos, um conjunto de monitorização
de tudo aquilo que se passa na nossa vida intelectual e uma negociação que tem
sempre a ver com as emoções. Para mim, uma emoção é uma reação afetiva que é
visível, pública. Se tiver uma emoção, eu vejo-a no seu rosto e no seu corpo,
percebo se está triste ou se está alegre. Eu e qualquer outra pessoa. Mas o
sentimento, a tristeza ou a alegria, é uma coisa que só o próprio tem. Pode até
mascará-lo, está triste e faz um esforço enorme para parecer alegre. Portanto,
o sentimento é sempre uma experiência, uma vivência do estado emocional em que
se está e que, por vezes, não é público.
O seu livro chama-se Uma Estranha Ordem das
Coisas. É assim tão estranho desvalorizarmos as emoções?
O problema de se denegrirem as emoções está extremamente enraizado. Assim
como também está extremamente enraizado o facto de se sobrevalorizar tudo
aquilo que tem a ver com razão, conhecimento, intelectualidade fria. O
“estranha” do título do livro também tem a ver com o facto de todo este
edifício – da enorme ação criadora dos sentimentos da vida humana – ter raízes
anteriores aos seres humanos. Há criaturas, como por exemplo as bactérias, que
têm não sentimentos mas sim aquilo que está por baixo dos sentimentos: certas
reações, movimentos e atitudes que lhes permitem governar a sua vida em relação
a qualquer coisa que está subjacente aos sentimentos, a homeostasia. Em suma,
este livro é sobre a forma como se tenta equilibrar aquilo que é o procedimento
de um organismo vivo e o modo como esse organismo está em equilíbrio e, ao
mesmo tempo, possui uma poupança de energia que vai permitir-lhe continuar para
o futuro.
O que é a homeostasia?
Para nós (que, ao contrário de muitas outras criaturas, temos mente,
sentimento e consciência), o estado da homeostasia do nosso corpo é expresso
através dos sentimentos. Quando alguém diz que tem bem-estar, está a dizer que
o seu cérebro e a sua mente foram informadas pelo seu corpo de que o estado do
seu corpo é bom. Por outro lado, se alguém disser que se sente engripado, isto
significa que o estado da sua homeostasia, o estado do seu corpo, acaba de
informar o seu cérebro e a sua mente de que há qualquer coisa que não está bem.
Propõe o fim dessa dicotomia milenar corpo/mente?
O pensamento segundo o qual existe o cérebro de um lado e, do outro, os
sentimentos e as emoções, e que estes não servem para nada? Pelo contrário:
estão absolutamente ligados ao nosso bem-estar, estão absolutamente ligados à
forma como se regula a nossa vida. Esse pensamento é uma ótica extremamente
obtusa, é estar a ignorar aquilo que é a base da nossa vida. Por exemplo, as
pessoas normalmente concebem o cérebro como o fabricador da mente. A verdade é
que o cérebro fabrica a mente, mas em cooperação com o corpo. Se o corpo não
existisse, o cérebro não fazia nada por si só. O cérebro é um servo do corpo. E
a mente é o resultado de uma conversa constante em duas direções: o corpo a
falar com o cérebro, o cérebro a falar com o corpo. O produto fundamental dessa
conversa são as emoções e os sentimentos. A partir daí é que vem toda a nossa
criatividade.
Enquanto seres humanos, a nossa excecionalidade,
reside mais nas emoções do que na inteligência?
Nós temos sistema nervoso, mente, sentimento e uma grande criatividade. As
bactérias têm apenas o princípio disto tudo: têm um princípio de atitude moral
e de emotividade, mas não têm mente, não têm sentimentos, nem sequer têm
sistema nervoso. Quando aparece, o sistema nervoso passa a ser o manda-chuva:
organiza a forma como todas as ligações são feitas, permitindo construir mentes
com sentimentos e a abertura para a intelectualidade. Os insetos sociais, por
seu lado, são muito curiosos porque estão entre as bactérias e os seres
humanos: são muito mais complexos do que as bactérias, são multicelulares e têm
sistema nervoso. O que não têm é a possibilidade de ter uma grande
intelectualidade, de inventar, de possuir uma determinação pessoal. Nós temos
um certo grau de livre-arbítrio, mas os insetos só fazem aquilo que o genoma
lhes manda fazer, tudo quanto fazem está de certo modo programado. Connosco, há
também uma grande parte que está programada (infelizmente, não somos tão
independentes como gostaríamos), mas há uma parte em que, de facto, somos nós
que mandamos.
Aceitamos razoavelmente bem que as emoções originem a
arte. No entanto, defende que as emoções estão na base da governança, da
economia, da tecnologia…
Repare nos grandes sistemas da ética, os sistemas de justiça e de
jurisprudência. Muitas vezes, as pessoas pensam nas leis ou nos princípios
morais como tendo sido construídos sem qualquer espécie de relação com aquilo
que somos do ponto de vista emocional. E isso não é verdade. Todos esses
produtos – da governação à economia, passando pelos sistemas morais – são, eles
próprios, o resultado da forma como nós reagimos àquilo que se está a passar à
nossa volta.
Quer exemplificar?
Tudo aquilo que tem a ver com sistemas morais tem a ver com aquilo que mais
nos preocupa e a que nós damos mais valor: saúde, vida, doença, morte, crime,
roubo, traição, mentira, lealdade, cuidado com os outros, amor, compaixão.
Vivemos cada dia fazendo apelo a estas qualidades e, quando elas faltam,
contamos com qualquer espécie de prejuízo. Veja como as regras morais foram
construídas por pessoas inteligentes e criadoras para reduzir a possibilidade
de as coisas más acontecerem. As leis são aquilo que vem consequentemente
porque a maior parte delas foi construída a partir da observação de princípios
morais. Atente na marcha: vida, vida emocional e dos sentimentos, princípios
morais, leis, justiça; vida, emoções e sentimentos, invenção da arte, prática
da arte. Tudo vem desta raiz: sentimento, emoção, homeostasia, vida.
Isso é um sistema filosófico.
Sim, e o que torna tudo isto ainda mais interessante é o facto de estarmos
num momento da História em que existem imensas coisas péssimas e horrorosas a
acontecer no mundo e, ao mesmo tempo, também existem coisas muito boas. E
algumas destas coisas provêm justamente da possibilidade de utilizar aquilo que
a ciência nos traz para fazer uma nova filosofia daquilo que é a vida, daquilo
que é a vida de todos nós. É juntar aquilo que vem da ciência com a maneira
como olhamos e compreendemos a vida, fazendo um pensamento sobre o que é a
vida. É isto que é a filosofia. A boa ciência é a ciência que permite ir até à
filosofia. E a boa filosofia, por sua vez, é aquela que está baseada em boa
ciência.
E o que é que acontece quando os sistemas políticos se
apropriam dessas emoções, como aconteceu com o comunismo?
Tanto os sistemas políticos como os sistemas religiosos podem degenerar em
coisas perfeitamente trágicas quando não há equilíbrio, quando não existe uma
negociação. O que é importante é que tudo aquilo que se faça tenha sempre em
vista, de modo muito saliente, a importância da vida do ser humano, a sua
dignidade. Muitas vezes as pessoas pensam que, agora que sabemos tanto sobre o
genoma e a maneira como o organismo funciona, não temos nada que nos distinga
das outras criaturas, somos apenas mais um animal. No meu entender, isso é
completamente falso. Em primeiro lugar, temos um enorme nível de consciência.
Depois, conhecemos muito do mundo e, assim, conhecemo-nos a nós próprios. Por
fim, a nossa memória ligada aos sentimentos distingue-nos dos outros seres
vivos.
Como evitar que a tecnologia
(e sobretudo a inteligência artificial)
esteja ao serviço de interesses imorais?
Vejamos o que está acontecer sobretudo com as tecnologias de comunicação.
As pessoas não se apercebem de que, com elas, veio uma capacidade – de entrar
na nossa mente, de monopolizar a nossa atenção, de intervir na formação dos
nossos juízos sobre coisas e pessoas… – a um nível completamente diferente
daquilo que tínhamos até agora. É preciso estar atento ao modo como isso altera
a forma de pensarmos, a forma como as crianças se educam (se autoeducam ou são
educadas), como tudo isso pode servir para manipular a opinião pública.
Observámos toda essa realidade numa série de processos eleitorais que ocorreram
nos últimos dois anos.
O que pensa da automação aplicada ao nosso quotidiano?
Vivo na Califórnia e, numa cidade como Los Angeles, existem neste momento
centenas, se não milhares, de automóveis completamente autónomos. Até agora
rejeitei o self-driving, mas o meu carro
tem self-parking [autoparqueamento] e lane-changing [mudança de faixa].
E é mais eficiente a fazê-lo do que um ser humano?
Em certas condições, é. Mandei desligar a self-breaking [autotravagem],
que permitia travar o carro quando este estava a aproximar-se do da frente antes
de eu atuar. Quando houver um grande número de pessoas a adotar esse sistema, é
possível que a circulação na estrada se torne até muito mais segura do que é
neste momento. Mas não me parece justo aceitar a entrada desse novo padrão
antes de ter sido discutido, antes de se ter pensado em todos os problemas que
uma tecnologia como essa vai originar. Continuando no self-driving, estou a falar, por exemplo, da estrutura
ética que tem que ser incluída no programa de maneira a que o carro não faça
violações éticas. Ou, pensando noutro caso, naquilo que uma automação
desvairada pode fazer em relação a certos empregos.
Não vê benefícios nessa
automação?
Claro que sim. Nos Estados Unidos da América, morrem todos os anos cerca de
37 mil pessoas na estrada. Desse ponto de vista, os carros autónomos podem
significar um ganho extraordinário. Claro que existem outras coisas que, ainda
antes disso, podemos fazer: tal como não ter à disposição armas de fogo que
permitam pôr, em dez minutos, 600 pessoas no hospital… Trata-se de uma
realidade que não tem razão nenhuma de ser.
O que é importante é que as pessoas estejam
conscientes daquilo que se está a passar: a inovação tecnológica traz benefícios
extraordinários, mas também tem aspetos negativos que é preciso controlar.
Em termos políticos, a comunicação está a originar a
polarização das opiniões, a fomentar nacionalismos e a exclusão do outro…?
É como se as pessoas vivessem num silo, estamos a assistir a um
ensimesmamento do indivíduo, que está muito confortável juntos dos seus amigos
e dos seus seguidores. Apenas tem de lidar com os que concordam consigo. A vida
não é feita disso, a vida é feita de constantes negociações com aqueles que não
pensam da mesma maneira que nós, com os que não são como nós.
Quando argumenta que é preciso educar para as emoções,
está a falar numa educação formal?
É uma educação formal, uma educação à base do treino, semelhante ao
aprender a tocar piano ou a praticar um desporto. Practice, practice, practice. E, claro, um treino
precisa de ter mentores. Digamos que se trata de uma prática orientada, quando
as pessoas cometem erros podem discutir o erro.
Quem devem ser esses mentores, as elites?
Todos nós. Claro que é melhor ter como mentores a elite do que a não-elite.
Não vai correr bem se o analfabeto me vier ensinar a ler… Do ponto de vista da
governação, as elites são um problema curioso: as elites são desejáveis, mas
tornam-se um problema quando traem a sua missão e os outros, quando se
corrompem. Quando temos elites que, em vez de se preocuparem com o bem comum,
se preocupam com o lucro desenfreado, que vai contra os interesses da maioria,
estamos perante elites corruptas.
Perante o atual estado do mundo, tem esperança?
Tenho, mas é uma esperança torturada. Por um lado, sinto um enorme contentamento
com as coisas boas que se passam no mundo, com a enorme beleza que advém da
realização artística e científica… Além disso, temos uma bagagem de
conhecimento extraordinária sobre o Universo, uma grande parte do que se passa
nas ciências é extraordinário, o que a tecnologia nos permite fazer é
extraordinário. Por outro lado, subsistem muitos problemas sociais, políticos e
de governação que atrasam esse estado de desenvolvimento. Existem coisas que
correm bem durante um tempo e, depois, tudo se desmorona. Há dias em que,
quando olho para o jornal, penso que não existe possibilidade de um novo
iluminismo, mas depois, no dia seguinte, quando estabilizo, já acho que, apesar
de não se tratar de uma curva regular de progresso, estamos a melhorar.
A que se devem esses falhanços?
São falhanços que, em grande parte, são causados por nós próprios. Somos
nós que trazemos o germe do nosso próprio fracasso. Na nossa estrutura
cerebral, temos regiões que controlam as nossas emoções, como é o caso da
resposta do medo, da raiva, de ciúme e de desprezo. Tratam-se de reações que
foram muito importantes, para os primatas e para o princípio do homo sapiens, quando vivíamos em condições muito
diferentes das de agora. A civilização tem controlado o pior dessas respostas
emocionais, mas não todas – e portanto ainda lá está a violência, o desagrado,
a dificuldade em aceitar todos os que são diferentes de nós, quer pelo
comportamento quer pela sua própria estrutura biológica.
E Portugal, como vê o atual estado da nossa condição?
Muito melhor do que o estado da condição humana em muitíssimos outros
países, maiores e mais importantes do ponto de vista económico e tecnológico.
Apesar de tudo o que corre mal, os portugueses conseguem conciliar-se mais
facilmente do que muitos outros. Em relação à Europa, onde tem havido problemas
graves, sobretudo do ponto de vista económico, conseguiram sair da parte pior
desses problemas. O que os portugueses mais precisam é de serem tecnicamente
mais capazes.
(Entrevista publicada na
VISÃO 1287, de 2 de novembro de 2017)
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