Damasco
Uma vez por semana, vou tentar
concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso
indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua
portuguesa
19 de Abril
de 2017, 7:39
Voltei ao meu escritório, ao meu castelo, ao meu reino privativo, onde
costumo fazer reuniões secretas comigo mesmo, preparatórias de um movimento de
massas utópicas que abram caminho à liberdade de se poder perguntar aos
portugueses se preferem um rei-presidente a um presidente-rei, um símbolo
aglutinador mais forte do que o galo de Barcelos e do que a selecção nacional
de futebol, e mais permanente. Não ouvindo, lá de fora, mesmo girando
cumplicemente o pescoço, qualquer sinal de uma vaga de fundo reivindicadora
dessa auscultação à vontade popular, em aprovação, mas também nenhum eco de um
possível ataque de tosse convulsiva por engasgamento dos mais afoitos deputados
da nação, em desaprovação, deixo-me estar a gozar a graça de estar sem ir,
agora que as âncoras lançadas ao mar neste porto de abrigo se encontram bem
fincadas ao primordial rochedo subjacente à minha nau, também ela – muito
fidedignamente – de pedra, mas talhada.
Depois da digressão, é boa a sensação de estar sentado no velho cadeirão
sem que a sala se mova nem haja comunicações sonoras a cada quarto de hora
sobre a necessidade de conservar os cintos apertados, a localização das saídas
de emergência, o sobressalto de uma zona de turbulência, a oportunidade de
comprar perfumes a preços especiais ou o que fazer no caso de nos cair um
escorpião na cabeça ou de nos proporem que cedamos o nosso lugar à companhia de
aviação para que possam viajar funcionários seus em lua-de-mel. É bom saber que
nada se vai mover, que as paisagens que se vêem da janela não vão mudar, que
não teremos de estar dez horas entalados entre uma senhora idosa simpática e
uma senhora jovem antipática e que não virá ninguém, quando estivermos a
dormir, agarrar-nos pelas pernas e arrastar-nos pelo corredor até à parte da
frente do avião para arranjar lugares para o pessoal da companhia aérea, mesmo
quando já sobrevoamos o Atlântico. Segurança – não há preço (mesmo em dólares)!
Ou por outra, no mundo real presente: mesmo em dólares, não há segurança, seja
a que preço for...
Passo um pouco pelas brasas para recuperar das diferenças horárias entre
partidas e chegadas e do cansaço das falsas partidas e das falsas chegadas, e
acordo pronto a dar os retoques finais ao meu escritório que é o meu centro de
trabalho, onde ganho a vida a escrever, tal como o Churchill – não, jovens
leitores, não me refiro ao nome do buldogue dos vizinhos do 9.º andar direito,
mas ao de um ex-primeiro-ministro inglês que, entre outras realizações,
inspirou o grupo de jazz-rock norte-americano Blood, Sweat & Tears, que
ainda existe (o Churchill já não, o que nos faz pensar no sentido da vida).
Prontas as estantes da minha biblioteca, como sabem os que costumam ler estas
crónicas, falta tratar as janelas e as portas de vidro, e mal sabia eu que a
decisão de contratar um especialista nestas coisas me iria conduzir a uma nova
viagem.
Recebi a técnica decoradora no local do crime que eu tentava evitar que
fosse cometido. Quando lhe pedi conselho sobre “umas coisas” que servissem de
barreira à insolação das lombadas dos meus livros, notei que reprimiu, com um
esgar momentâneo, um sorriso reprovador da minha ignorância na matéria, e
começou a defender as suas damas cortinas, os seus (delas) paladinos
reposteiros e, de passagem, a aspergir-me com nomes de cores e materiais
sonantes e inspiradores. Depois, estragou tudo ao dizer-me que queria descobrir
quais os materiais que iam “de encontro ao meu estilo”. Não sei se lhe perdoei
menos o querer vender-me coisas contra o meu estilo ou o não ler as minhas crónicas.
Expliquei-lhe que preferia coisas que fossem “ao encontro do meu estilo”. Não
percebeu a diferença, mas prometeu-me um desconto. E concluiu que do que eu
precisava era de damasco.
Palavra curiosa
Caravançarai
Não será fácil encontrar maior curiosidade do que esta: caravançarai. Remete para uma realidade antiga de séculos, contemporânea da Rota da Seda, uma rede de circuitos de comercialização assente em caravanas de camelos para levar, por terra, produtos de luxo a milhares de quilómetros dos seus lugares de produção, aproveitando o motor inicial da seda. Para cobrir tais distâncias, numa era anterior à motorização dos veículos, era indispensável assegurar pontos de paragem e descanso tanto para homens como para animais. Cada uma dessas estruturas de apoio, dessas estalagens, era um caravançarai, caravançará ou caravancerá, formas que derivam do persa “karawansarai”, palácio das caravanas. Além dos leitores de romances, historiografia ou arqueologia do Médio Oriente, também os que seguem a carreira do guitarrista norte-americano Carlos Santana poderão conhecer a palavra, já que deu o nome a um dos seus álbuns: “Caravanserai”. E já que estamos a falar de música, impõe-se uma associação de ideias: da última parte de “karawansarai”, ou seja, “sarai”, que quer dizer palácio, temos a palavra “serralho”, que, além de residência do Sultão da Turquia, também veio a significar a parte de um palácio reservado às mulheres, que conhecemos melhor por harém (do árabe “haram”, proibido, sagrado), o conjunto das odaliscas que compõem o serralho. Os melómanos sabem que Mozart compôs uma ópera que nos familiarizou com esta palavra: “O Rapto do Serralho” (1782).
Não será fácil encontrar maior curiosidade do que esta: caravançarai. Remete para uma realidade antiga de séculos, contemporânea da Rota da Seda, uma rede de circuitos de comercialização assente em caravanas de camelos para levar, por terra, produtos de luxo a milhares de quilómetros dos seus lugares de produção, aproveitando o motor inicial da seda. Para cobrir tais distâncias, numa era anterior à motorização dos veículos, era indispensável assegurar pontos de paragem e descanso tanto para homens como para animais. Cada uma dessas estruturas de apoio, dessas estalagens, era um caravançarai, caravançará ou caravancerá, formas que derivam do persa “karawansarai”, palácio das caravanas. Além dos leitores de romances, historiografia ou arqueologia do Médio Oriente, também os que seguem a carreira do guitarrista norte-americano Carlos Santana poderão conhecer a palavra, já que deu o nome a um dos seus álbuns: “Caravanserai”. E já que estamos a falar de música, impõe-se uma associação de ideias: da última parte de “karawansarai”, ou seja, “sarai”, que quer dizer palácio, temos a palavra “serralho”, que, além de residência do Sultão da Turquia, também veio a significar a parte de um palácio reservado às mulheres, que conhecemos melhor por harém (do árabe “haram”, proibido, sagrado), o conjunto das odaliscas que compõem o serralho. Os melómanos sabem que Mozart compôs uma ópera que nos familiarizou com esta palavra: “O Rapto do Serralho” (1782).
Eu contrapuz com veludo e mandei chamar a minha mulher, para dar uma
opinião sobre o assunto, contanto que me apoiasse. Em breve entrava, sorrateira
como só ela sabe ser, a nossa governanta, Zulmira, anunciando que a sua
senhora, que por coincidência é minha mulher (o que era bom, porque evitava
mais confusões), não se encontrava no castelo, recordando-me que, por aquela
altura, estaria a dar uma conferência em Foz de Iguaçu, do lado direito das
cataratas, para quem sobe.
Para não dar parte de fraco, respondi: “É claro!”, que é o que se responde
quando não se tem nenhuma ideia sobre o que se há-de dizer. Na verdade, a minha
mulher dá tantas conferências, participa em tantos seminários, viaja para
tantos congressos, tem tantas reuniões, escreve tantos artigos científicos que
chego a esquecer-me de que sou casado. Isto é aborrecido porque já aconteceu de
nos encontrarmos fortuitamente num corredor a meio da noite e ela começar a
gritar por socorro a pensar que eu era um ladrão e eu a correr atrás dela para
tentar saber quem era aquela bela mulher a gritar na minha casa, por que tinha
fugido de mim e por que se tinha encerrado num quarto tão parecido com o meu.
Para tentar convencê-la a abrir a porta, só me ocorreu recitar uma quadra do
poeta António Aleixo:
“Sei que pareço um ladrão,
Mas há outros que eu conheço
Que, sem parecerem que o são,
São aquilo que eu pareço.”
A grandiosidade do poeta funcionou mais uma vez, a porta abriu-se e, quando
eu me preparava para perguntar àquele ser radioso se me dava a honra de ser
minha mulher, ela pareceu reconhecer-me e saudou-me assim: “Ah, afinal, és tu?
Pensava que era outra pessoa, o Viriato de Viseu, o chefe dos lusitanos no
tempo dos romanos, sei lá... Que grande susto! Também quem te manda deixar
crescer essas barbas sem me dizeres nada?...” Fiquei confundido. Viriato, eu?!...
Mas ele tinha barbas? Como é que se vai saber, se não havia fotografias e não
era fácil encontrar um pintor de retratos nas montanhas onde ele se
refugiava?...
Regressei à realidade (fosse ela qual fosse) e pedi à decoradora que
voltasse no dia seguinte para uma reunião comigo e que me trouxesse o maior
número de amostras de tecidos que pudesse, mesmo os que não são utilizados em
decoração, mas que tenham um lugar próprio na história dos têxteis e dos
símbolos. “Confie em mim: pode não dar para um artigo científico, é duvidoso
que dê para uma conferência, mas é com muitos desses nomes que se tecem sonhos.
Esta noite vou investigar as palavras e amanhã fá-las-emos corresponder às
amostras dos tecidos reais que nos vai trazer. Vá, não me falhe!...” E apontei,
teatralmente, com o braço esticado prolongado por um indicador não menos hirto
nem menos afirmativo, para o exterior, para o universo onde ela buscaria
retalhos de tecidos que têm nomes de plantas, de animais, de lugares que dão
para alimentar a nossa natureza simbólica, nossa, das pessoas, fazendo recordar
momentos de vida, sonhos nunca vividos, lugares nunca visitados, quanto mais
misteriosos, melhor. A jovem – pois quem, não sendo jovem, se disponibilizaria
para uma expedição destas?... – entreabriu as portas de vidro que davam para
fora, parou, olhou para trás e fez um gesto largo de despedida com a mão que
poderia muito bem sair de “E Tudo o Vento Levou”.
Fiquei a pensar no damasco de Damasco, de que hoje só se fala por guerra,
destruição, morte e refugiados, mas que, até há poucos anos, associaríamos à
delicadeza de um fruto, ao luxo de um tecido de seda ou à intrigante conversão
de Paulo de Tarso, perseguidor de cristãos, no seguidor de Cristo a quem chamam
S. Paulo, que se diz que ocorreu na estrada de Damasco. Aguardando o tempo em
que voltem àquela terra as riquezas da paz e da hospitalidade, encontro esta
descrição: “Damasco – Tecido de seda com desenhos acetinados em fundo não
brilhante. // Estofo de lã, linho ou algodão imitando o damasco de seda. //
Tipo de tecido que, pela sua composição de efeito de fundo e efeito de desenho,
constituído pela face teia e pela face trama de um mesmo ponto, tem a
particularidade de ser reversível, apresentando numa das faces o fundo opaco e
os motivos brilhantes e na outra o fundo brilhante e os motivos opacos. //
Técnica de produção de tecido.”(1)
Está certo, evidentemente, mas acrescento o que a palavra contém – como
muitas outras – de dificilmente transmissível, de simbólico, dos significados
imaginários adquiridos no momento em que foi pela primeira vez ouvida ou lida e
que nunca mais passaram. Nem quero que passem.
(1) “Glossário de Termos Têxteis”, de Manuela Pinto da Costa, in Revista da
Faculdade de Letras “Ciências e Técnicas do Património”, Porto, 2004,
consultado através do endereço na Internet http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4088.pdf
.
Correio Premente
De Adalberto Pancadas, lugar de Tornaleites, freguesia de Espinhal,
concelho de Penela: “Acho-lhe piada. O que quer? Cada tolo com a sua mania. Mas
agora que me aposentei da minha carreira de técnico oficial de contas, a minha
psiquiatra aconselhou-me a distrair-me o mais possível de 38 anos a olhar para
números e desde que descobri as suas crónicas tenho melhorado e já consigo
mesmo sair à rua para ir ao café ou ao supermercado. Acontece que no meu livro
da quarta classe de 1962 havia um poema chamado 'Vozes dos animais', da autoria
de já não sei quem era, mas que me impressionou a pontos de me vir à cabeça a
cada passo, principalmente – e isto é que é curioso – quando vejo transmissões
de debates da Assembleia da República ou intervenções de certos comentadores
políticos, comentadores-políticos, políticos-comentadores e ex-políticos
comentadores. Não sei onde pus o raio do livro, mas o meu neto localizou-me o
poema num instante na Internet – esta juventude é danada. Como penso que não
conhecerá o tal poema, quer porque desapareceu dos manuais escolares, quer
porque não o tenho encontrado em nenhuma colectânea de poesia contemporânea,
aqui o envio para ver se os seus leitores reconhecem algumas semelhanças com as
vozes que nos entram em casa pela janela da televisão sem dizer ‘água vai!’:
‘Vozes dos Animais’
De Pedro Dinis.
Palram pega e papagaio
E cacareja a galinha
Os ternos pombos arrulham
Geme a rola inocentinha
Muge a vaca, berra o touro
Grasna a rã, ruge o leão,
O gato mia, uiva o lobo
Também uiva e ladra o cão.
Relincha o nobre cavalo,
Os elefantes dão urros,
A tímida ovelha bala,
Zurrar é
próprio dos burros.
Regouga a sagaz raposa,
Brutinho muito matreiro;
Nos ramos cantam as aves,
Mas pia o mocho agoureiro.
Sabem as aves ligeiras
O canto seu variar:
Fazem gorjeios às vezes,
Às vezes põem-se a chilrar.
O pardal, daninho aos campos,
Não aprendeu a cantar;
Como os ratos e as doninhas
Apenas sabe chiar.
O negro corvo crocita,
Zune o mosquito enfadonho,
A serpente no deserto
Solta assobio medonho.
Chia a lebre, grasna o pato,
Ouvem-se os porcos grunhir,
Libando o suco das flores,
Costuma a abelha zumbir.
Bramam os tigres, as onças,
Pia, pia o pintainho,
Cucurica e canta o galo,
Late e gane o cachorrinho.
A vitelinha dá berros
O cordeirinho balidos,
O macaquinho dá guinchos,
A criancinha vagidos.
A fala foi dada ao homem,
Rei dos outros animais:
Nos versos lidos acima
Se encontra em pobre rima
As vozes dos principais.”
Muito obrigado pela sua atenção, caro leitor. Boa convalescença. Os meus
colegas também me pedem para lhe agradecer, já que ficaram com a redacção do
noticiário político, social e desportivo muito mais facilitada.
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