PALAVRA DE AURÉLIO
Ougado
Vou tentar concentrar-me na tarefa que
me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo
ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa.
16 de Março
de 2019, 9:06
De fonte tão segura como amável me chegaram ecos de haver sido recebida com
atributo de alguma graça, em certas porções dos territórios por onde a nossa
língua vai resistindo às investidas do bárbaro rico, um ou dois dos exemplos
tratados na crónica anterior. Sendo assim, prossigo, já
que a satisfação de alguma alma, se bem que momentânea e mesmo que incógnita e
longínqua, é a maior paga que já tenho recebido deste ofício de entremear
palavras com histórias ou, se quiserem, até com historietas, mas nunca com
“estórias”, que é bicho que não como, mixórdia que não bebo, bordão que não
uso, por desnecessidade e objecção de consciência.
Passemos então ao que nos traz cá, antes que um “tlim”, um “fiu”, um
“bóri-bóri”, um “tara-rá” — ou seja lá qual for o ruído indicador da recepção
de uma mensagem ou de uma “notificação” do sistema, programa ou aplicação que
os chama ao culto do grupo fechado em circuito aberto — os afaste de mim e da
minha prédica, esquecendo, ingratamente, que mais doce não se pode esta fazer,
e não se faz, cá ou no estrangeiro.
Começo com arreigar, esse verbo medianamente circulante, que serve para
descrever aquele que se prende à casa, à família, aos amigos, ao bairro, à
cidade, ao país, à tradição, e dali não arreda pé, haja inundações ou secas,
tal como a árvore forte que fica incólume à passagem da enxurrada. Mas dá-se o
caso de arreigar ter parentesco com raiz – o que se conclui mais facilmente se
soubermos que deriva do latim arradicare, que, por sua vez, vem
de radicare, que significa lançar raízes – surgindo bem visível nas
nossas palavras radicar (criar raízes; enraizar; arreigar) e radical (do
latim radicale, da raiz). E tudo isto reforçando a ideia que já
temos de que a ideia de raiz comunga da ideia de origem. Ora, voltando ao ponto
de partida arradicare e ao ponto de chegada arreigar, não é
muito difícil imaginar que pode faltar aqui um elo de ligação que nos possa
explicar por que (razão) o “arra” passou a “arre”. E falta. Felizmente, no
castelo em que eu moro, promovo a realização de escavações arqueológicas. De
uma delas, desenterrámos um esqueleto quase petrificado que, depois de
pincelado, escovado e lavado, se revelou ser do verbo arraigar, o tal elo de
ligação em falta. Arraigar, sim, tem a vantagem de mostrar a correspondência
quase total com arradicare, pelo menos no que diz respeito às
primeiras sílabas da palavra, já que as médias foram sacrificadas à falta de
ouvido musical dos povos nossos ancestrais, ao tempo em que conviveram com os
invasores falantes de latim. Mas se arraigar tem a vantagem que comentávamos,
tem a desvantagem de exigir uma ginástica articulatória muito em
desconformidade com os dotes populares indígenas respectivos. E foi assim, mais
ou menos assim, que arraigar foi arredondado lentamente, ano após ano (mais
rapidamente nos bissextos), para arreigar.
Mais saboroso ainda é o caso de ougado. Ougado remete para o fenómeno rural
do simplório que come com os olhos à falta de meios para ter à sua mesa o que
por vezes descobre na dos outros. Ou daquele desgraçado que, em se preparando
para comer uma atraente talhada de melancia, no Verão, ou uma colherada de
papas de sarrabulho, no Inverno, lhe vê ser arrancado do espaço útil do
abocanhar o objecto do abocanhamento tido como certo, quer por besta, quer por
humano, quer por um composto dos dois que ainda transita muito por aí, e não só
no confinamento das áreas rurais.
Não se pense que é coisa pouca (o acto de morder em seco), pois as sequelas
(e não estou a falar de longas-metragens com continuação) daí advenientes podem
ser múltiplas, maiores e multidisciplinares, para cá não faltar palavra tão em
uso na academia e na política. Basta lembrar o sinal exterior mais conhecido do
ougado: o cabelo arrepiado, para se concluir como hoje em dia as cidades estão
tão pejadas de sofredores dessa doença que nem o gel nem o cabeleireiro a
conseguem esconder. Tal como o monstro do Dr. Frankenstein, do livro de Mary
Shelley, que seria ougado de vida, os exemplos abundam, selectivamente
paradigmáticos segundo o seu público-alvo: o Herrera do F.C. Porto “pré-overhauling”,
o violinista Nigel Kennedy, o mitológico Tântalo supliciado, cada um, à sua
maneira, é simbólico do desafortunado que bem cedo na vido começou a receber
lições de como conjugar frustrações regular e irregularmente.
– Deve ser muito bom, enguias de escabeche!...
– Como sabes, filho? Já comeste?...
– Não, senhora. Vi comer...
Palavra curiosa
Varanda
Parece não ser palavra extraordinária,
mas as suas origens são interessantes. É verdade que vários dicionários e até
o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro
Machado, não passam da frustrante indicação “de origem obscura”, mas no Hobson-Jobson
The Anglo-Indian Dictionary, de Henry Yule e A. C. Burnell, encontramos as
pistas do sânscrito moderno baranda, do bengali baranda ou
do hindi varanda, que nos empurram numa direcção, para logo depois,
os citados autores acharem estranho que tanto portugueses e espanhóis pudessem
ter usado o vocábulo tão cedo e tão correntemente como no Roteiro da
Viagem de Vasco da Gama, de 1498, ou no Vocabulário Hispano-Árabe de
Pedro de Alcala, de 1505, defendendo que a palavra já tinha existência em
Espanha e Portugal e que terão sido os portugueses a levá-la para a Índia em
vez de a terem trazido de lá, introduzindo-a, portanto, no hindi e no bengali.
E, a partir da Índia, também no inglês. A propósito do uso da palavra em
inglês, socorro-me do saboroso filme de 1949 Adam’s Rib (A
Costela de Adão), de George Cukor, em que o actor David Wayne canta a
Katharine Hepburn a canção Farewell Amanda, em cujos versos Cole
Porter fez rimar Amanda com veranda. Vale muito a pena conferir,
vendo o filme do princípio ao fim.
E passaram-se tantas vidas sem chegar a comer... Mas isso era antigamente,
quando tudo era caríssimo e raro e distante. Hoje não há ougados, ou estão
todos escondidos atrás das fragas delimitadoras do país atrasado imaginado
pelos citadinos. Ou estão presos. Ou estão no Governo ou nas autarquias ou nos
lugares de nomeação política da administração pública. Ou nos “reality shows”,
que são espectáculos de realidade aumentada e formação diminuída, de um
realismo chocante, quando não de sobre-realismo.
Antigamente, era um problema. Se uma criança não tinha apetite,
excluindo-se a espinhela caída, o mau-olhado, as bichas, ou ter de resolver
problemas de aritmética da escola primária em decímetros cúbicos de água
necessários para encher uma banheira furada, podia dar-se o caso de estar
ougada. Tinha de chamar-se a casa pessoa sabedora da receita ancestral: com a
massa sobrante da fornada de broa, fazer uma rodela chata com um dedo de
altura, se tanto, que a criança recebedora marcava com a ponta do seu dedo
indicador. Indo a cozer e tirado do forno, deveria o ougado comer esse bolo
ainda morno, atrás de uma porta que dê para dentro, até se saciar. Sobrando
alguma parte, não pode esta deitar-se fora: só a podem comer as galinhas. Se
tudo assim for feito, dois ou três dias depois recupera o ougado o seu apetite.
Se não, óleo de fígado de bacalhau.
Mas que palavra vem a ser ougado? Bem, mais não é do que a corruptela de
aguado, que se refere à água que cresce na boca de todo aquele que já esteve
perante uma visão de um objecto cobiçado, normalmente um petisco real ou
idealizado, mas não obrigatoriamente. É capacidade notável do homem — e
mulheres também, não desfazendo — criar simbologias de tal modo elaboradas que
chega a não as distinguir das realidades a partir das quais as projectou ou às
quais, em espírito, as associou. Não esteve mal aquela pessoa que falou, em
escritos, de um fingidor de tal sorte que chegava a fingir que era dor a dor
que deveras sentia. É por isso que, diante de um trompetista prestes a entrar em
palco, é proibido mencionar a palavra limão, pois o acréscimo de água na boca
em reacção à sugestão ácida, arruinar-lhe-ia a prestação instrumental. Não se
faça!
Voltando à vaca fria: como se passa de aguado para ougado? Bem, fechando os
ouvidos à melodia e elegendo como instrumento favorito o pesado bombo de festa,
em cujas peles agredidas por grossas baquetas poderemos figurar os nosso
tímpanos, enquanto se aceitam apostas sobre quais irão primeiro rebentar. Mas
que é verdade que as palavras dão essas voltas sofrendo tratos de polé, sei-o
eu de ouvir, em pequeno, as pessoas mais velhas dizerem todas “auga” em vez de
água, bons alunos que eram da escola oral que veio pela Galiza abaixo, fazendo
a nossa língua. Ora, de “auga”, “augado”. Mais fácil de dizer: ougado.
Correio Premente
De Azul Marinho e Tinto, lugar de Portela de Nexebra, freguesia de
Alviobeira, concelho de Tomar: “Em todas as crónicas que escreveu até agora,
que fiz questão de ler devagar, para melhor o apanhar em falso, nem uma só vez
se referiu a um animal de estimação. Ora, eu nunca confiei em três tipos de
pessoas: em quem não bebe, em quem não gosta de futebol e em quem não tem um
animal de estimação. E não me tenho dado mal: tenho casa própria, tenho uma
casa alugada a um banco, tenho um Audi, um jipe, uma moto de água e um realejo.
E uma reforma jeitozinha do Parlamento Europeu. Por isso, apesar de tantas
palavras que me deu, não confio em si. Não leve a mal, que eu também não levo.”
Não levo, não. Já tenho muitos anos disto. Sendo que, com “disto” tanto
quero dizer anos de tarimba jornalística, de convívio com colegas e mestres com
quem muito aprendi, de lidar com processos tecnológicos complexos na sua
simplicidade, outros simples na sua mediocridade, como de aturar malucos, que
são uma espécie de moscas atraídas pelo mel da tinta tipográfica. Por isso, é
com algum receio que contemplo a hipótese de ter de corrigi-lo. Ao longo desta
torrente de escrita que tem sido todo este projecto a que estou preso como
lampreia a vidro de aquário, referi-me algumas vezes, de passagem, a animais,
alguns dos quais ferozes, outros empalhados, e a dois em especial que quis que
permanecessem incógnitos: o casal de crocodilos que habita o fosso que circunda
o meu castelo, a Dinamene e o Lullabye, que o
tratador tratava carinhosamente por “Dilma meme” e “Lula Vai!” e com quem
tirava auto-retratos a escancarar-lhes as mandíbulas, para enviar à família
(dele, tratador), até um deles (crocodilos), com a cumplicidade do outro, lhe
ter arrancado o braço até ao antebraço. Agora, interpôs uma acção cível
exigindo-me uma indemnização de três milhões de euros. A vida é bela.
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