sexta-feira, 4 de março de 2022

Centenário de José Saramago


Prémio Nobel da Literatura


A 8 de outubro de 1998 a Academia Sueca anunciava em comunicado à imprensa: o Prémio Nobel de Literatura 1998 é concedido a José Saramago, escritor «que, através de parábolas sustentadas pela imaginação, compaixão e ironia, nos permite apreender continuamente uma realidade fugidia»



 MEMORIAL DO CONVENTO

José Saramago

JOSÉ SARAMAGO nasceu na Golegã em 16 de

Dezembro de 1932, no seio de uma família de trabalhadores

rurais. Veio para

Lisboa muito novo, onde fez o curso secundário. Foi director

literário

numa editora, colaborou na revista Seara Nova,

no vespertino Diário de Lisboa e foi director- adjunto do

matutino Diário de

Noticias (de Abril a Novembro de 1975). A partir de 1976

dedicou-se

completamente à literatura. Os seus romances

têm sido publicados no Brasil, Espanha, Itália,

Alemanha, Rússia, França, etc. Principais prémios:

Levantado do Chão (1980), Prémio Cidade de

Lisboa; Memorial do Convento (1982), Prémio

Literário Município de Lisboa; Ano da Morte de

Ricardo Reis (1984), Prémio Pen Club Português.

Reside actualmente em Espanha.

Editorial Caminho, SA. Lisboa, 1982

(c) Editores Reunidos, Lda., Lisboa, 1994, para a presente

edição



D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa,

que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou.

Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre

seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos se confia. que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça.

Além disso, quem se extenua a implorar ao céu um filho não é o rei, mas a rainha, e também por duas razões. A primeira razão é que um rei, e ainda mais se de Portugal for, não pede o que unicamente está em seu poder dar, a segunda razão porque sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber, há-de ser naturalmente suplicante, tanto em novenas organizadas como em orações ocasionais.

 Mas nem a persistência do rei, que, salvo dificultação canónica ou impedimento fisiológico, duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever real e conjugal, nem a paciência e humildade da rainha que, a mais das preces, se sacrifica a uma imobilidade total. 

Depois de retirar-se de si e da cama o esposo, para que se não perturbem em seu gerativo acomodamento os líquidos comuns, escassos os seus por falta de estímulo e tempo, e cristianíssima retenção moral, pródigos os do soberano, como se espera de um homem que ainda não fez vinte e dois anos, nem isto nem por causa deste cobertor, sufocante até no frio Fevereiro, que D. João V não passa toda a noite com a rainha, ao princípio sim, por ainda superar a novidade ao incómodo, que não era pequeno sentir-se banhado em suores próprios e alheios, com uma rainha tapada por cima da cabeça, recozendo cheiros e secreções. D. Maria Ana, que não veio de um país quente, não suporta o clima deste. Cobre-se toda com o imenso e altíssimo cobertor, e assim fica, enroscada como toupeira que encontrou pedra no caminho e está a decidir para que lado há-de continuar a escavação da galeria.

Vestem a rainha e o rei camisas compridas, que pelo chão arrastam, a do rei somente a fímbria bordada, a da rainha bom meio palmo mais, para que nem a ponta dos pés se veja, o dedo grande ou os outros, das impudicícias conhecidas talvez seja esta a mais ousada. D. João V conduz D. Maria Ana ao leito,

leva-a pela mão como no baile o cavaleiro à dama, e antes de subirem os degrauzinhos, cada um de seu

lado, ajoelham-se e dizem as orações acautelantes necessárias, para que não morram no momento do acto carnal, sem confissão, para que desta nova tentativa venha a resultar fruto, e sobre este ponto tem D. João V razões dobradas para esperar, confiança em Deus e no seu próprio vigor, por isso está dobrando a fé com que ao mesmo Deus impetra sucessão. Quanto a D. Maria Ana, é de crer que esteja rogando os mesmos favores, se porventura não tem motivos particulares que os dispensem e sejam segredo do confessionário. Já se deitaram. Esta é a cama que veio da Holanda quando a rainha veio da Áustria, mandada fazer de propósito pelo rei, a cama, a quem custou setenta e cinco mil cruzados, que em Portugal não há artífices de tanto primor, e, se os houvesse, sem dúvida ganhariam menos. A desprevenido olhar nem se sabe se é de madeira o magnífico móvel, coberto como está pela armação preciosa, tecida e bordada de florões e relevos de ouro, isto não falando do dossel que poderia servir

para cobrir o papa. Quando a cama aqui foi posta e armada ainda não havia percevejos nela, tão nova era, mas depois, com o uso, o calor dos corpos, as migrações no interior do palácio, ou da cidade para dentro, donde este bichedo vem é que não se sabe, e sendo tão rica de matéria e adorno não se lhe pode aproximar um trapo a arder para queimar o enxame, não há mais remédio, ainda não o sendo, que pagar a Santo Aleixo cinquenta réis por ano, a ver se livra a rainha e a nós todos da praga e da coceira. Em noites que vem el-rei, os percevejos começam a atormentar mais tarde por via da agitação dos colchões, são bichos que gostam de sossego e gente adormecida. Lá na cama do rei estão outros à espera do seu quinhão de sangue, que não acham nem pior nem melhor que o restante da cidade, azul ou natural.

D. Maria Ana estende ao rei a mãozinha suada e fria, que mesmo tendo aquecido debaixo do cobertor logo arrefece ao ar gélido do quarto, e el-rei, que já cumpriu o seu dever, e tudo espera do convencimento e criativo esforço com que o cumpriu, beija-lha como a rainha e futura mãe, se não presumiu demasiado frei António de S. José. É D. Maria Ana quem puxa o cordão da sineta, entram de um lado os camaristas do rei, do outro as damas, pairam cheiros diversos na atmosfera pesada, um deles que facilmente identificam, que sem o que a isto cheira não são possíveis milagres como o que desta vez se espera, porque a outra, e tão falada, incorpórea fecundação, foi uma vez sem exemplo, só para que se ficasse a saber que Deus, quando quer, não precisa de homens, embora não possa dispensar-se de mulheres.

Ainda que insistentemente tranquilizada pelo confessor, tem

D. Maria Ana, nestas ocasiões, grandes escrúpulos de alma. Retirados el-rei e os camaristas,

deitadas já as damas que a servem e lhe protegem o sono, sempre cuida a rainha que seria sua obrigação

levantar-se para as últimas orações, mas, tendo de guardar o choco por conselho dos médicos, contenta-se com murmurá-las infinitamente, passando cada vez mais devagar as contas do rosário, até que adormece no meio duma ave-maria cheia de graça, ao menos com essa foi tudo tão fácil, bendito seja o fruto do vosso ventre, e é no do seu ansiado próprio que está pensando, ao menos um filho, Senhor, ao menos um filho. Deste involuntário orgulho nunca fez confissão, por ser distante e involuntário, tanto que se fosse chamada a juízo juraria, com verdade, que sempre se dirigira à Virgem e ao ventre que ela teve. São meandros do inconsciente real, como aqueles outros sonhos que sempre D. Maria Ana tem, vá lá explicá-los, quando el-rei vem ao seu quarto, que é ver-se atravessando o Terreiro do Paço para o lado dos açougues, levantando a saia à frente e patinhando numa lama aguada e pegajosa que cheira ao que cheiram os homens quando descarregam, enquanto o infante D. Francisco, seu cunhado, cujo antigo quarto agora ocupa, alguma assombração lhe ficando, dança em redor dela, empoleirado em

andas, como uma cegonha negra. Também deste sonho nunca deu contas ao confessor, e que

contas saberia ele dar-lhe por sua vez, sendo, como é, caso omisso no manual da perfeita confissão. Fique D. Maria Ana em paz, adormecida, invisível sob a montanha de penas, enquanto os percevejos começam a sair das fendas, dos refegos, e se deixam cair do alto dossel, assim tornando mais rápida a viagem. Também D. João V sonhará esta noite. Verá erguer-se do seu sexo uma árvore de Jessé, frondosa e toda povoada dos ascendentes de Cristo, até ao mesmo Cristo, herdeiro de todas as coroas, e depois dissipar-se a árvore e em seu lugar levantar-se, poderosamente, com altas colunas, torres sineiras; cúpulas e torreões, um convento de franciscanos, como se pode reconhecer pelo hábito de frei António de S. José, que está abrindo, de par em par, as portas da igreja.

Não é vulgar em reis um temperamento assim, mas Portugal sempre foi bem servido deles.

Bem servido de milagres, igualmente. Ainda é cedo para falar deste que se prepara, aliás milagre não

tanto, mas simples obséquio divino, descimento de olhar piedoso e propiciatório para um ventre sáfaro,

qual há-de ser o nascimento do infante na hora própria, mas é justamente tempo de mencionar veros e

certificados milagres que, por virem da mesma e ardentíssima sarça franciscana, bem auguram da promessa do rei.

Veja-se o célebre caso da morte de frei Miguel da Anunciação, provincial eleito que foi da ordem terceira de S. Francisco, cuja eleição, diga-se de passagem, mas não fora de propósito, se fez com acesa guerra que contra ela e ele levantou a Paroquial de Santa Maria Madalena, por obscuros ciúmes, em tal sanha que à morte de frei Miguel ainda corriam pleitos e não se sabe quando, de vez, seriam julgados, se é que teriam fim, entre sentença e recurso, entre conselho e agravo, até que a morte viesse encerrar o processo, como veio a suceder. É certo que não morreu o frade de coração despedaçado, mas de maligna, que seria tifo ou tifóide, senão outra febre sem nome, remate comum de vida em cidade de tão poucas fontes de água para beber e onde os galegos não se duvidam de ir encher os barris à fonte dos cavalos, e assim morrem imerecidamente provinciais. Porém, era frei Miguel da Anunciação de tão compassiva natureza que, mesmo depois de morto, pagou o mal com o bem, e se vivo fizera caridades,

defunto obrava maravilhas, sendo a primeira desmentir os médicos que temiam se corrompesse o

corpo aceleradamente e por isso recomendaram abreviada sepultura, que não se corrompeu tal o carnal

despojo, antes por espaço de três dias inteiros embalsamou a igreja de Nossa Senhora de Jesus onde esteve exposto, com suavíssimo cheiro, e não se lhe enrijeceu o cadáver, pelo contrário, brandamente os membros todos se deixavam mover, como se vivo estivesse.

Segundas e terceiras maravilhas, mas de valor primeiríssimo, foram os milagres propriamente ditos tão

assinalados e ilustres que acorreu o povo de toda a cidade a observar o prodígio e a aproveitar dele, pois

se autentica que na dita igreja foi dada vista a cegos e pés a mancos, e era tanta a afluência de mundo que nos degraus do adro se davam punhadas e punhaladas para entrar, de que alguns perderam a vida, que depois nem por milagre lhes seria restituída. Ou talvez sim, se, passados três dias, e sendo grande o alarme, dali não tivessem levado o corpo, às ocultas, e às ocultas o enterraram. Privados da esperança de cura enquanto não constasse o passamento doutro bem-aventurado, no mesmo lugar se esbofetearam de desespero e fé lograda mudos e manetas, se a estes lhes sobrava mão, em gritos todos e invocações a quantos santos, até que os padres saíram fora a benzer o ajuntamento, e com essa suficiência, à falta de melhor, se foram uns e outros.

Mas isto, confessemo-lo sem vergonha, é uma terra de ladrões, olho vê, mão pilha, e sendo a fé tanta,

ainda que nem sempre recompensada, maior é o descaro e a impiedade com que se salteiam igrejas, como foi ainda o ano passado em Guimarães, também na de S. Francisco, que, por tão vultosos bens ter desprezado em vida, tudo consente que lhe levem na eternidade, o que vale à ordem é a vigilância de

Santo António, que esse resigna-se mal a que lhe rapem altares e capelas onde estiver, como em Guimarães se viu e em Lisboa se há-de ver.


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