Para que a escola não seja uma
“catedral do tédio” é preciso que os alunos contem
25/04/2016 - 08:23
Pode parecer pouca coisa, mas esse
pouco, que em Portugal será sempre muito, poderia curar o crescente desamor dos
jovens face à escola. Basta começar por lhes “dar voz”, permitir que no ensino
secundário sejam eles a escolher disciplinas em função dos seus “interesses e
talentos” e adequar programa
No ensino secundário deviam ser os alunos a escolher
disciplinas em função dos seus “interesses e talentos”, dizem estudantes e
especialistas ENRIC VIVES-RUBIO
Missão impossível? “Se outros países já
o fizeram, nós também podemos, embora isso signifique uma grande transformação
do ensino em Portugal”, responde Manuel Magalhães, 20 anos, que está a estudar
no Instituto Politécnico de Leiria. É um dos seis jovens, entre os 16 e os 20
anos, a quem o PÚBLICO perguntou: o que pode ser mudado nas escolas para que
estas (e o processo de aprendizagem) se tornem mais atractivos para os alunos.
A mesma questão foi também colocada a pais e professores.
Na base deste desafio estão os
resultados do último estudo internacional sobre a adolescência, da Organização
Mundial de Saúde, divulgados no mês passado, que tem na base inquéritos
realizados a mais de 220 mil adolescentes, dos quais cerca de seis mil são
portugueses. Não será decerto, por acaso, que estes aparecem entre os que
gostam menos da escola, colocando Portugal na 33.ª pior posição entre os 42
países e regiões analisados.
Não temos voz nas aulas e devíamos ter. É uma das formas de expressão mais
importantes
Daniela Guilherme, 18 anos
Nem sempre foi assim. Em 1997/98 o país
ocupava a segunda posição neste indicador, mas em 2014/2015, ano do último
estudo, apenas 25% dos alunos portugueses com 15 anos disseram que gostavam
muito da escola. Mais concretamente, põem em causa as aulas, que consideram
aborrecidas, e a matéria que ali é dada, descrita por eles como sendo
excessiva.
“Estou um pouco desanimada”, desabafa
Daniela Guilherme a propósito da sua experiência escolar. “Não temos voz nas
aulas e devíamos ter. É uma das formas de expressão mais importantes, mas nós
só escrevemos. Existe muito pouco diálogo entre alunos e professores e a
confiança é assim quase nula”, descreve a aluna de 18 anos, que frequenta o
12.º ano numa escola de Angra do Heroísmo, Açores.
À semelhança dos outros jovens com quem
o PÚBLICO falou, Daniela faz parte do projecto Dream Teens, criado em 2014 pela
associação nacional de promoção da saúde dos jovens, Aventura Social,
responsável pelo estudo da OMS em Portugal, e que tem precisamente, entre os
seus objectivos principais “ouvir a voz” dos mais novos e dá-la a conhecer. A
escola é dos temas sempre presentes.
Usem as novas tecnologias nas aulas, que é o que nos mantém atentos
Marta Martins, 20 anos
O ensino como uma linha de montagem
Tal como estão, “as escolas tornam-se,
para inúmeras crianças e adolescentes, verdadeiras catedrais do tédio”, alerta
Ilídia Cabral, docente da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade
Católica Portuguesa, com vários trabalhos realizados sobre o insucesso escolar
no ensino básico e secundário. E isto acontece, frisa, porque se “ensina hoje
como se ensinava há 200 anos”, seguindo uma estrutura construída com o advento
da Revolução Industrial e que se traduz num “modelo de organização escolar padronizado,
de inspiração fabril, do tipo linha de montagem, que permitiu às escolas darem
o mesmo a todos”.
Porém, prossegue esta investigadora, os
alunos de hoje são bem diferentes do que eram há dois séculos. “São alunos cada
vez mais heterogéneos, com acesso quase imediato a inúmeras fontes de
informação, nativos digitais para quem as metodologias de ensino
tendencialmente expositivas e fragmentadoras do conhecimento se revelam, muitas
vezes, totalmente desadequadas e muito pouco apelativas”, diz. E é assim que o
tempo escolar se “torna, em muitos casos, um tempo vazio de significado para os
alunos, por se encontrar completamente afastado da sua realidade, dos seus
interesses e das suas necessidades”.
Usar a sério as novas tecnologias
Embora por outras palavras, Marta
Martins, 20 anos, que está a estudar no Instituto Politécnico da Maia, aponta
no mesmo sentido. “O ensino está a querer fazer de nós máquinas. Somos
obrigados a estar mais horas na escola, a estudar mais matéria, o que só nos
provoca mais stress”, diz, para acrescentar que “a falta de
interesse dos jovens não é pela escola em si, mas sim pelas aulas e pelos
conteúdos ali leccionados, que muitas vezes não vão ser precisos” no futuro.
Sabe isso, sobretudo, pelos seus colegas
que frequentam o ensino regular: “Muitos não percebem metade do que estão a dar
nas aulas, o que os leva a ficar desmotivados e até a desistir”, refere. Ela
frequentou duas escolas profissionais, onde tirou um curso de animação digital.
“Não tive professores a debitar a matéria. Mesmo a Português, tive uma
professora que nos deu a matéria de forma tão apelativa, que ainda hoje a sei.”
Qual foi o segredo? “Primeiro de tudo
deixava-nos à vontade e depois procurava sempre adaptar as aulas aos objectivos
do curso, propondo-nos, por exemplo, que fizéssemos uma peça de teatro ou um
vídeo a partir de excertos dos livros que são obrigatórios no 12.º ano.”
Cada aluno deveria ter um plano curricular baseado nos seus interesses e
talentos
Manuel Magalhães, 20 anos
Já se sabe que os professores podem
fazer a diferença e Marta tem uma proposta a fazer-lhes: usem, de facto, “as
novas tecnologias nas aulas, porque assim vamos estar mais atentos”. Esta é
também uma das sugestões apresentadas pelos professores do 3.º ciclo e
secundário, Luísa Mantas e Ricardo Montes, que também é autor do blogue
ProfLusos, um dos mais antigos na área da Educação.
“Aproximar, quando oportuno e possível,
as metodologias de ensino à realidade dos alunos, nomeadamente na utilização
das novas tecnologias, poderá ser um elemento motivador”, constata este último,
para alertar de seguida: “Quando falo em novas tecnologias, não me refiro às já
desgastadas apresentações multimédia, mas sim à utilização de aplicações
virtuais e recorrendo aos melhores amigos tecnológicos dos nossos alunos — os tabletse smartphones”.
“Não se justifica que se o aluno pode
adquirir um tablet com todos os manuais digitais e usá-lo em
sala de aula e em casa, tenha que carregar com quilos de livros, com as
implicações para a sua saúde e a carteira dos pais”, acrescenta Luísa Mantas,
que ensina no Alentejo.
Professora há 23 anos, mãe de quatro
filhos, esta docente foi também mediadora da associação Empresários para a
Inclusão Social, onde trabalhou com alunos que têm percursos difíceis na escola
e com as suas famílias. A estas experiências junta-se ainda a colaboração com
Comissões de Protecção de Crianças e Jovens, onde, como diz, “a maioria das
situações se prendem, de uma forma ou de outra, com o insucesso e o absentismo
ou abandono escolar”.
Tal como estão, “as escolas tornam-se, para inúmeras crianças e
adolescentes, verdadeiras catedrais do tédio”, alerta Ilídia Cabral, docente da
Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa. E isto
acontece, frisa, porque se “ensina hoje como se ensinava há 200 anos”. Só que,
prossegue esta investigadora, os alunos de hoje são bem diferentes do que eram
há dois séculos
À semelhança da aluna Marta Martins,
defende ser “importante reconhecer que mais não é necessariamente melhor”.
“Passar mais tempo na escola, assimilar maior quantidade de informação,
permanecer na escola mais anos, não é sinónimo de garantir a aprendizagem, a
motivação ou o sucesso futuro, pelo menos para muitos alunos”, alerta. Aliás,
acrescenta, “para a maioria dos jovens a escola não tem nada para oferecer
neste momento”. Para ela, é esta a questão de fundo que hoje se coloca.
Poder escolher as disciplinas
O que é preciso fazer então? “Há que
repensar os currículos, as metas e os manuais escolares”, defende, para
acrescentar de seguida: “Porque não diversificar os currículos, dando algumas
opções aos jovens de acordo com os seus talentos, as suas competências, as suas
aspirações futuras? Porque não promover e privilegiar a interdisciplinaridade e
o relacionar de conhecimentos através de projectos e outras actividades?”
Faz imensa falta ter aulas onde possamos debater e comentar, para nos
habituarmos a expor o que pensamos
Daniela Guilherme, 18 anos
“Os currículos são demasiados rígidos.
Cada aluno deveria ter um plano curricular [escolha de disciplinas] baseado nos
seus interesses e talentos”, corrobora o aluno do Politécnico de Leiria, Manuel
Magalhães. É o que acontece, por exemplo, no Reino Unido nos anos equivalentes
ao 11.º e 12.º, em que os alunos apenas têm três cadeiras (menos de metade do
que por cá), que são escolhidas por eles. Nelson Rebelo, 16 anos, que está no
10.º ano numa escola de Oeiras, lamenta que no ensino secundário não seja
possível esta escolha e que tenha sido obrigado a prescindir de disciplinas de
que gostava por ter optado pelo curso de Ciências e Tecnologias em vez de
Ciências Socioeconómicas.
“Temos um sistema educativo muito formatado,
que é excessivamente teórico e onde temos quase sempre de ouvir o professor,
quando também deviam permitir que fossemos nós a pesquisar e a apresentar as
matérias, o que só acontece muito raramente”, aponta Sara Fialho, 18 anos, que
entrou este ano no curso de Bioquímica da Universidade Nova de Lisboa.
Nelson concorda. Defende que as aulas
deveriam ter uma componente mais prática e sobretudo que os professores dessem
mais autonomia aos alunos, para que estes “pudessem descobrir por si próprios”
como se solucionam problemas ou se interpretam textos, em vez de se limitarem
“a estar a ouvir “. Diz ainda que o sistema de ensino em Portugal “não abre
portas a novas ideias, à discussão e ao debate”.
Para Carla Pereira, presidente da
Associação de Pais da Escola Secundário Eça de Queirós, na Póvoa do Varzim, os
tempos curriculares deveriam ser diminuídos também para permitir a realização
de debates e tertúlias sobre temas vários, que fizessem da “escola um local de
aprendizagem transversal, logo a começar no ensino básico”. Diz ainda a este
respeito que “as escolas têm também de formar bons cidadãos”.
Em vez de estarmos sempre a ouvir um professor, devíamos ter autonomia para
também descobrirmos por nós próprios
Nelson Rebelo, 16 anos
É disso também que fala Daniela
Guimarães, quando propõe que se promova uma maior ligação da escola ao meio
envolvente, incentivando os alunos a procurarem saber, por exemplo, que
projectos existem nas autarquias e a apresentá-los periodicamente. “Deste modo
os alunos vão sentir-se abraçados pela comunidade. É assim que se cresce como
pessoa, o que não se consegue pela imposição de regras e pela pressão que nos é
posta em cima, sobretudo por causa dos exames”, defende.
Falta de apoio dos professores
Os jovens ouvidos pelo PÚBLICO lamentam
ainda que a escola desvalorize ou mesmo ignore temas que para eles são
fundamentais, como a família ou a educação sexual. Mas Teresa Carreira, 18
anos, que estuda em Salvaterra de Magos e vai este ano repetir os exames para
melhorar a média e conseguir entrar em Medicina, aponta também o dedo aos
alunos. “Pensei que ia haver troca de informações e debate entre Associações de
Estudantes sobre o que podíamos fazer nas escolas, mas isso não acontece”,
refere.
Queixa-se ainda “da falta de apoio dos
professores fora da sala de aula”. “Só existe quando se aproximam os exames”,
constata.
“Os professores estão transformados em
burocratas do cumprimento de metas curriculares que parecem listas de compras
mensais no hipermercado e não investem na relação interpessoal com os alunos
por falta de condições, mas também por excesso de autocomiseração, desfiando
sistematicamente queixas sobre tudo e todos, a começar pelos alunos”, critica
Jorge Ferraz, que pertenceu à direcção da Associação de Pais do Agrupamento de
Escolas Baixa-Chiado, em Lisboa.
Os exames só deveriam ser obrigatórios para quem quisesse seguir para a
faculdade
Manuel Magalhães, 20 anos
Uma das formas de aproximar professores
e estudantes passará, segundo ele, por acabar com o actual Estatuto do Aluno,
que “transforma os docentes em queixinhas e contribui para destruir a ligação
imprescindível entre disciplina, aprendizagem e empatia interpessoal”.
Um novo papel para docentes e alunos
Para a investigadora da Universidade
Católica Ilídia Cabral é “urgente” alterar não só a organização escolar,
como também as práticas pedagógicas, o que passará, entre outras medidas, por
atribuir um novo significado ao papel do professor e do aluno. Orientando o
professor “para uma acção de mediação entre os alunos e o saber, tornando-o um
facilitador das aprendizagens, um professor que responsabiliza, mas apoia e
suporta e que fomenta a autonomia dos seus alunos”. Já o aluno, acrescenta,
deve ser encarado como “o actor central das suas aprendizagens, envolvendo-o e
comprometendo-o em torno de objectivos claros, que sejam delineados
conjuntamente com os professores”.
Esta centralidade do aluno é, aliás, uma
das estratégias da Finlândia, geralmente apontada como modelo no campo do
ensino, para adaptar a escola a um “mundo que está a mudar a grande
velocidade”, segundo palavras da directora do Conselho Nacional de Educação
finlandês.
A reforma educativa, que entrará em
vigor no próximo ano lectivo, porá assim os estudantes a participar na
elaboração dos currículos, na escolha dos temas que serão abordados nos novos
módulos que vão ser oferecidos pelas escolas e onde, a propósito de cada
tópico, serão mobilizados conhecimentos de várias disciplinas, sempre com aplicações
práticas.
De regresso a solo português, Nelson
Rebelo, o estudante de 16 anos de Oeiras, conta que não tem tido problemas com
o seu desempenho escolar. Mas esta é só uma das faces da moeda. “Sei que
cresceria mais se o meio da educação fosse diferente do que é”, remata.
Para conseguir essa diferença, Ilídia
Cabral considera que se devem “criar condições para fazer emergir novas
possibilidades de sucesso, o que significa equacionar novos modos de agrupar os
alunos, segundo matrizes flexíveis”. E, por outro lado, apostar na
“diversificação dos modos de trabalho pedagógico, porque os alunos aprendem de
forma diferente e a forma de ensinar não pode continuar a assentar na forma
escolar, que deixa de fora todos aqueles que não se encaixam no perfil (ficcionado)
do aluno médio”.
Deviam permitir que fossemos nós a pesquisar e a apresentar também as
matérias, o que só acontece muito raramente
Sara Fialho, 18 anos
Já para Ricardo Montes, que lecciona em
Trás-os-Montes, há uma condição prévia sem a qual não se conseguirá alterar a
relação que os alunos têm com o ensino e que, segundo ele, não tem sido
acautelada pelo poder político, bem pelo contrário: “A primeira forma de tornar
mais atractiva a escola aos alunos passará por essa mesma escola conseguir motivar
os professores. Sem professores motivados, dificilmente teremos alunos que o
estejam.”
Embora considere que o sucesso do resto,
que é muito, dependerá desta premissa, este docente tem mais sugestões a
apresentar com vista a reforçar a atracção dos alunos pela escola. Diz que a
redução do número de alunos por turma, um tema que está agora a ser debatido no
Parlamento, “poderá fomentar a motivação dos alunos” por permitir “um ensino
mais individualizado”, o que nunca poderá suceder numa turma de 30 alunos.
Na sua experiência profissional, Ricardo
Montes tem constatado que, geralmente, os alunos “não definem objectivos com
vista a conseguirem uma vida melhor”, embora acredite que sintam essa
necessidade, ou então “fazem-no de forma pouca clara”. Por outro lado, recorda,
estes “mesmos alunos deparam-se com o insucesso profissional dos seus irmãos,
amigos ou conhecidos mais velhos que conseguiram concluir cursos superiores”.
Defende, por isso, que “estas duas situações poderiam ser trabalhadas na
escola, por técnicos com formação para o efeito, e em articulação com os
docentes, de modo a que os alunos definissem ou redefinissem objectivos tendo
em vista a realidade nacional e europeia”.
Mas ainda há mais por fazer. A
presidente da associação de pais da secundária Eça de Queirós considera
indispensável que se tenha “um objectivo para a educação estável e duradouro,
imune às alterações políticas”. “A escola deve ser um local de formação e não
de autenticação de cunhos pessoais”, frisa Carla Pereira. Esta é também uma das
propostas da aluna Daniela Guimarães com vista a tornar a escola um sítio
melhor. “É muito complicado vivermos sempre na suspeita de que no próximo ano
tudo vai ser diferente outra vez”, queixa-se.
E se nada mudar entretanto? Para Ilídia
Cabral não subsistem dúvidas sobre o desfecho: “As escolas têm de aprender a
ensinar no século XXI, sob pena de se tornarem dispensáveis.”
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