Unboxing: pessoas a desembrulhar coisas, que vídeos
são estes que hipnotizam os seus filhos?
Tem filhos pequenos que gostam de ver vídeos no YouTube com crianças – e
adultos – a rebentar balões, brincar com bonecos, pintar com tintas coloridas
ou a desembrulhar ovos de chocolate? E também não entende bem que coisa é esta?
Chama-se unboxing, começou com vídeos de pessoas a desempacotar tecnologia e
passou depois para um novo patamar. Hoje, estas imagens bizarras têm milhões de
visualizações. Os pais só querem entender as razões.
30/05/2017
Texto Ana Pago | Fotos de Shutterstock
Os vídeos que Ema, de 4 anos, gosta de ver no YouTube
deixam o pai abismado: adultos a rebentar balões, a moldar plasticinas, a
pintar as mãos com tintas dizendo as cores que usam; a mergulharem bebés de
plástico em guaches e a sacarem surpresas de dentro de taças cheias de M&M;
a brincar com super-heróis abrindo ovos Kinder no final – as variações são
imensas. Pedro Palma olha a filha num silêncio perplexo. Vê-a capaz de passar
horas naquilo, se por acaso fosse pai para a deixar horas entregue aoiPad.
E ele ali sentado com ela na sala, a filtrar conteúdos, hipnotizado também.
Sempre se questionou como é que vídeos assim podem render milhões de
visualizações. De onde vem esta febre inominável? E, mais importante ainda,
porquê?
O ritmo é lento, focado numa tarefa única, com uma simplicidade
apelativa para crianças que processam tanta informação nova todos os dias», diz
a psicóloga Filipa Jardim Silva.
«Já conhecia o fenómeno do unboxing [à
letra tirar da caixa], em que se vê gente a abrir embalagens e ovos de
chocolate, revelando o que contêm. Mas estes vídeos vão além disso», explica
Pedro Palma, para quem os media contribuem cada vez mais para a construção do
saber, a par da família e da escola. «A Ema tinha 2 anos quando andou numa
piscina de bolas, então mostrei-lhe um vídeo de meninos numa piscina igual para
incentivá-la a falar.» O sistema automático do YouTube sugeriu outros vídeos,
entre eles o de umas mãos a tirarem bonequinhos de tigelas de M&M com uma
colher. «Depois desses descobriu mais, de crianças a brincar com bonecos e a
desembrulhar surpresas, e de adultos a fazerem o mesmo para um público
claramente infantil. Foi o fim da picada», diz o pai com humor.
E a verdade é que estas imagens têm, de facto, uma
espécie de efeito hipnótico, afirma a psicóloga clínica Filipa Jardim Silva. «O
ritmo é lento, focado numa tarefa única, com uma simplicidade apelativa para
crianças que processam tanta informação nova todos os dias.» A duração é
adequada: curta e ajustada à capacidade atencional dos pequenos, mantendo-os
interessados do princípio ao fim. Também a narrativa das tarefas e a música
ambiente ativam uma resposta sensorial meridiana autónoma. «Trata-se de um
fenómeno biológico que induz o relaxamento ao produzir uma agradável sensação
de formigueiro na cabeça, couro cabeludo ou regiões periféricas do corpo, em
resposta a estímulos visuais, auditivos e cognitivos.»
Do ponto de vista emocional, o unboxing é
contagiante. Quem vê não é um mero espetador.
Segundo o guru do marketing dinamarquês
Martin Lindstrom, autor do livro A Lógica do Consumo (ed.
Harper Collins), outra razão que justifica o êxito do unboxing e
suas derivações são os neurónios-espelho, ativados quando uma ação realizada
por outros está a ser, ao mesmo tempo, observada por nós. «É como se ver e
fazer fossem a mesma coisa, com níveis de prazer idênticos», diz. As crianças
assistem às gravações de outros a brincar com super-heróis, a abrir ovos-surpresa ou a rebentar balões
de água – de novo tudo a acontecer naquele instante diante dos seus olhos – e a
impressão que têm é a de serem elas a vivê-las, concorda a psicóloga social Ana
Cristina Martins, professora do ISPA – Instituto Universitário: «Do ponto de
vista emocional, o unboxing é contagiante. Quem vê não é um
mero espetador.»
Foi em 2004 que a publicação de eletrónica de consumo Engadget usou
o termo pela primeira vez, num artigo sobre a Nintendo DS. Dois anos mais
tarde, alguém nos EUA se lembrou de fazer um vídeo a desembalar um telemóvel
Nokia E61 e partilhou com o mundo as suas impressões do momento. Num instante,
o unboxing galopou para outras áreas de consumo como a
cosmética, compras do supermercado, ovos de chocolate ou plasticina com
surpresas dentro e pacotes infantis de jogos, personagens e brinquedos da moda.
As derivações entretanto surgidas a partir dounboxing tornam
difícil contabilizar o fenómeno (que terá crescido uns 57 por cento em 2014, de
acordo com o YouTube). Desconhece-se ainda até que ponto as marcas influenciam
a divulgação de produtos nestes canais, já que a maior parte parece surgir da
iniciativa dos utilizadores.
«O contágio de emoções e o efeito-surpresa fazem do unboxing um
fenómeno fascinante, até viciante», sublinha a psicóloga social Ana Cristina
Martins.
Para Daniel Cardoso, doutor em Ciências da Comunicação
na vertente de Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias, não há aqui tanto um
apelo ao consumo de brinquedos mas dos próprios vídeos, tentando posicionar o
canal como uma marca. «Do que vejo, estes canais dirigem-se às crianças em
termos de conteúdo e apresentação, tentando alcançar visualizações no YouTube e
até parcerias futuras de publicidade», aponta. Certo é que os ganhos se
traduzem em 1,5 a 3 euros por cada mil visitas, em vídeos que chegam a ter mais
de 100 milhões de visualizações. «A consumir construímos significados sociais,
processos simbólicos. Este tipo de partilhas vai muito além de um mero apelo ao
consumo ao mostrar o que escolhemos, como escolhemos e o prazer que tiramos
dessa forma de dar sentido às nossas vidas», justifica o especialista.
Também a psicóloga social Ana Cristina Martins
reconhece ser redutor limitar o fenómeno à questão consumista – ainda que se
trate de uma poderosa estratégia deneuromarketing, apelando aos tais
neurónios-espelho e aos centros de recompensa do cérebro. «O desembrulhar dos
produtos é faseado, acompanhado de interjeições e de informações positivas que
geram uma atitude favorável em quem vê», explica. Há quase um sentido tátil
associado. Um prazer que estimula e nos mantém agarrados justamente por isso.
«O contágio de emoções e o efeito-surpresa fazem do unboxingum
fenómeno fascinante, até viciante», sublinha.
Sem esquecer o papel educativo, acrescenta Pedro
Palma: «Estão sempre a alertar para a tecnologia nas mãos dos miúdos, mas não
acho justo proibir a Ema de algo que adora quando também joga à bola na rua,
pula no parque, faz puzzles e o que é suposto na idade dela.»
O YouTube é um complemento, frisa o pai, averso a extremismos quando foi a ver
aqueles vídeos que a filha aprendeu o alfabeto, os números até 30 e as cores,
tudo em português e em inglês. «Ela vê os outros brincar e adapta gestos aos
seus jogos, quase como se estivesse em interação.» A psicóloga Filipa Jardim
Silva apoia o bom senso: não vale a pena diabolizar nada. «Mais importante é
saber a que materiais são expostos, por quanto tempo, supervisionados por um
adulto.» E assumir que há sempre benefícios e riscos em todos os contextos da
vida, seja ela digital ou real.
DEIXE OS SEUS FILHOS VER OS VÍDEOS, MAS TENHA ISTO EM
MENTE
1. MODERAR
2. EXPERIMENTAR
3. MIMIFICAR
4. INVENTAR
Brincar é uma descoberta individual (ou grupal,
conforme o brinquedo) determinante para desenvolver a criatividade. A brincar a
criança (re)inventa-se, aprende a lidar com o mundo, e esse trajeto só é
devidamente percorrido se a criança o fizer por si mesma, relacionando-se com
os objetos sem ser por interposta pessoa como acontece nounboxing.
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