Prémio Nobel da
Química 2018 para a evolução no “tubo de ensaio”
Comité distinguiu trabalhos baseados em experiências que aproveitaram “o
poder da evolução”.
3 de Outubro
de 2018, 10:57 actualizado a 3 de Outubro de 2018, 16:32
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O Prémio
Nobel da Química de 2018 foi atribuído à norte-americana Frances H. Arnold
e, a outra metade, ao norte-americano George P. Smith e ao britânico Gregory P.
Winter, anunciou esta quarta-feira o comité do Nobel no Instituto Karolinska,
em Estocolmo (Suécia). O prémio tem um valor de nove milhões de
coroas suecas (cerca de 871 mil euros). “Os laureados de Química deste ano
assumiram o controlo da evolução e usaram os
mesmos princípios – mudança genética e selecção – para desenvolver proteínas
que resolvem os problemas químicos da humanidade.”
Frances
H. Arnold, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, em Pasadena (EUA),
recebe o Nobel da Química pelo trabalho desenvolvido com a “evolução
dirigida de enzimas”. A outra metade do prémio será dividida entre George P.
Smith, da Universidade do Missouri, em Columbia (EUA), e por Sir Gregory P.
Winter, do Laboratório de Biologia Molecular do MRC (Medical Research
Council), em Cambridge (Reino Unido), pelo trabalho desenvolvido com péptidos
(fragmentos de uma proteína) e anticorpos em fagos, minúsculos vírus que apenas
infectam bactérias.
“Os
métodos que os premiados desenvolveram servem para promover uma indústria
química mais verde, produzir novos materiais, fabricar biocombustíveis
sustentáveis, tratar doenças e, assim, salvar vidas”, referiu o comité do
Nobel.
O
comunicado de imprensa do comité do Nobel tem o sugestivo título de “A
(r)evolução na química” e começa por referir que o poder da evolução é revelado
na diversidade da vida. Não é preciso ser prémio Nobel ou sequer cientista para
constatar que estamos cercados de vida e que esta assume múltiplas formas em
qualquer ambiente, do mais inóspito ao mais fértil. Desde as mais profundas
brechas na Terra até ao cume das montanhas mais altas deparamos com vida. Isto
acontece porque “a evolução” resolveu uma série de complexos problemas químicos.
Exemplos: os peixes nadam nos oceanos polares porque possuem proteínas
anticongelantes no seu sangue, os mexilhões conseguem agarrar-se às rochas
porque desenvolveram uma cola molecular que funciona na água. O comunicado de
imprensa continua esta viagem pela evolução e lembra que a química da vida está
nos nossos genes e que uma pequena alteração que mude a equação pode tornar-nos
mais fracos ou mais robustos.
“Este
processo chegou tão longe que deu origem a três indivíduos tão complexos que
conseguiram, eles próprios, dominar a evolução.” Foi através da evolução
dirigida, a evolução num tubo de ensaio, que os três laureados revolucionaram a
química e o desenvolvimento de novos fármacos, mais eficazes e com menos
efeitos secundários, já que são feitos a partir de nós.
Do táxi até ao Nobel
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Frances
H. Arnold usou a evolução dirigida para produzir enzimas, “a mais aguçada
ferramenta química da vida”. No início da sua carreira, a engenheira mecânica e
aeroespacial investiu nas energias renováveis à procura de uma nova tecnologia.
Primeiro trabalhou com energia solar, mas depois acabou por se virar para novas
tecnologias de ADN. “Era evidente que era necessário no nosso dia-a-dia uma
maneira inteiramente nova de fazer materiais e químicos e que a podíamos
alcançar se conseguíssemos reescrever o código da vida”, refere a cientista,
citada no comunicado de imprensa.
A investigadora Frances Arnold PHIL
MCCARTEN/REUTERS
O plano
era usar enzimas, conceber novas enzimas. Uma abordagem arrogante? Sim, a
própria cientista admite-o. Era demasiado difícil replicar estas complexas
estruturas formadas por milhares de aminoácidos em infinitas combinações
possíveis. Restava inspirar-se na natureza e imitar o seu método: a evolução. E
assim começou a “brincadeira”. Passo após passo, aperfeiçoou a técnica,
substituindo apenas o princípio da evolução apoiado na sobrevivência do mais
apto por uma “selecção” neste novo campo da “evolução dirigida”.
Actualmente,
as enzimas produzidas no laboratório de Frances Arnold são capazes de catalisar
reacções químicas que nem sequer existem na natureza, formando materiais
inteiramente novos. Uma das principais aplicações destas enzimas está no desenvolvimento
de novos fármacos, mais eficazes e com menos efeitos secundários. Coincidência
ou talvez não, a cientista voltou a trabalhar na área das energias renováveis e
desenvolveu enzimas que transformam açúcares simples numa substância que pode
ser usada para a produção de biocombustíveis usados em carros ou aviões ou de
plástico menos prejudicial ao ambiente.
Dos três
laureados, apenas se soube esta quarta-feira alguns detalhes da vida pessoal de
Frances H. Arnold. Além de ficarmos a saber que é uma sobrevivente de cancro e
que é filha do físico nuclear William Howard Arnold e tem três filhos, também
foi divulgado que a cientista enquanto jovem trabalhou como empregada num clube
de jazz e foi motorista de táxi.
O investigador Gregory Winter ALBERTO
MORANTE/EPA
Tirar partido dos
fagos
A outra
metade do prémio Nobel da Química coloca os fagos debaixo dos holofotes. Neste
caso, George P. Smith e Gregory P. Winter usaram um método chamado “phage
display” (apresentação em fagos) para desenvolver novas proteínas. O
resultado é a possibilidade de conceber produtos capazes de neutralizar
toxinas, combater doenças auto-imunes e, em alguns casos, tratar cancros
metastáticos.
Mas
vamos por partes. Quando, nos anos 80, George Smith entrou no mundo dos fagos,
o objectivo era usá-los para clonar genes. No entanto, nessa altura a
tecnologia e o conhecimento na área da genética era muito diferente do que
temos hoje. Muitos dos genes que produzem certas proteínas não estavam sequer
identificados. Assim, o cientista decidiu usar os fagos para procurar os genes,
uma espécie de cana de pesca que com o isco certo conseguia capturar uma
“agulha num palheiro”.
Como
isco usaram anticorpos. Tal como explica o comunicado de imprensa, os
anticorpos possuem essa fantástica capacidade de funcionarem como mísseis direccionados,
conseguindo identificar e unir-se a uma única proteína entre milhares com uma
precisão incrível. Se os investigadores conseguissem apanhar alguma coisa numa
sopa de fagos usando um anticorpo que se associasse a uma conhecida proteína,
iam também conseguir chegar, por arrasto, até ao gene que comanda a produção
dessa proteína. Em 1985, George Smith produziu um fago com um fragmento de uma
proteína, um péptido, na sua superfície e, usando um anticorpo, conseguiu
“pescá-lo” de uma sopa com muitos fagos. Estavam assim estabelecidas as bases
da técnica de apresentação em fagos, ou phage display. “O método é
brilhante na sua simplicidade”, refere o comité do Nobel, acrescentando que se
apoia num forte pilar fazendo com que o fago funcione como uma ligação entre a
proteína e o seu gene. Nos anos 90, vários grupos de investigação usaram esta
técnica para desenvolver novas biomoléculas.
George P. Smith na sua casa em Columbia, no Missouri (EUA), esta
quarta-feira CORTESIA DE MARJORIE SABLE/REUTERS
Uma das
pessoas que usou a técnica phage display foi o terceiro laureado
da edição deste ano do Prémio Nobel da Química, Gregory Winter. O cientista
conseguiu usar esta técnica para a produção de anticorpos, concretizando o
conceito de uma evolução dirigida, orientada. Aproveitando o modus
operandide fagos e anticorpos, produziu uma biblioteca de fagos com milhões
de variedades de anticorpos na sua superfície. Nos anos 90 criou uma empresa
farmacêutica baseada na produção de um anticorpo humano, o adalimumab, que foi
aprovado em 2002 para o tratamento de artrite reumatóide e também é usado para
tratar diferentes tipos de psoríase e doenças inflamatórias do intestino.
O
“sucesso” deste primeiro anticorpo inteiramente humano produzido em laboratório
empurrou a indústria farmacêutica que está a usar a técnica do phage
display para produzir, por exemplo, anticorpos para o cancro. Outro
anticorpo farmacêutico aprovado neutraliza a toxina que causa antrax, uma
doença infecciosa aguda, e outro novo anticorpo abranda o lúpus, uma doença
auto-imune. Em ensaios clínicos há muitos outros anticorpos criados com este
método para vários fins, entre os quais combater a doença de Alzheimer.
Resumindo,
confirma-se que houve uma (r)evolução na química e que ainda está em curso. E,
apesar dos receios de quem antevê uma possibilidade de usarmos esta evolução
dirigida pelos humanos para fabricar “coisas más”, para já, o que está a ser
feito é “apenas” em benefício da humanidade.
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