·
INÍCIO
·
CULTURA
O conto de Mia Couto que
antecipava a tragédia do ciclone Idai
De
como o velho Jossias foi salvo das águas é um conto do
primeiro livro do escritor moçambicano Mia Couto, Vozes Anoitecidas.
Um texto onde se fala da "chuva está a chover até os poços começaram
cuspir".
Uma criança entre os destroços alagados em Busi, perto da Beira
© REUTERS/Mike Hutchings
25 Março 2019 — 13:18
De como o velho Jossias foi salvo das águas
I.
Lembrança do tempo de antigamente
A terra estava a conversar com agosto e o velho
Jossias, parado, escutava. Os meses estão todos no ventre uns dos outros,
pensava ele. E adivinhava a chegada dos dias, suas roupas e cores. Sabia da
chegada da chuva, pressentia as suas gotas timbilando a areia.
- A água vai andar ler o chão. Vai lamber as feridas
da terra, parece um cão vadio - dizia o velho.
E voltava ao silêncio, os olhos no alto a medir as
nuvens, por precaução.
- Parece é só metade da chuva. Há de caber bem na
terra.
Enquanto profetizava, amoleciam-lhe os olhos de
promessas, uma procissão de verde a tomar-lhe conta dos sonhos.
- O milho vai-me tratar por senhor.
E era já gente grande, sorrindo do gozo antecipado da
fartura. Assaltou-o a recordação da grande fome de há vinte anos. Foi-se
rendendo ao sono, agora que o pensamento se deitara na sombra daquela
lembrança.
Recordava-se bem: as cerimónias para pedir chuva
sucediam-se em casa do régulo. As rezas eram palavras sem mais além: nem uma
gota se convencera a descer. Durante mais três anos os velhos insistiram,
conversando com os mortos que mandam na vontade da chuva.
Naquela manhã, logo cedo mataram o boi. As mulheres
prepararam a aguardente do milho, o ngovo.
No cemitério os velhos pediam aos defuntos a licença
da chuva. Depois das rezas, dariam de beber aos mortos deitando aguardente
sobre as campas.
- Sou eu que vou levar as panelas do ngovo -
ofereceu-se Jossias.
Deram-lhe a vaidade daquela entrega. Com respeito, ele
partiu pela areia quente dos trilhos. No caminho, parou com pena do cansaço dos
braços. Pesavam as panelas. O calor e a sede sopravam-lhe maus conselhos,
barulhando convites.
Bebeu, fechando os olhos à voz da aguardente. Repetiu
mais três vezes. Certeiro, o álcool começou a cacimbar a razão. As panelas
sorriam-lhe, mornas e gordas. Parecem a Armanda quando dança a provocação que
ela sabe, murmurava.
- Vocês? Vocês estão-me sacudir o sangue!
Falava devagarmente, enrolando as palavras sem que a
cabeça entrasse naquele pensamento. A voz de Armanda avisava-o do castigo,
endireitando-lhe o juízo que faltava. E ele, outra vez para as panelas:
- Meninas, vocês estão desgraçar minha vida.
Provocar-me da maneira como assim? É melhor marrar mais outra vez as capulanas.
Vou acabar o serviço que fui mandado.
Quis-se levantar mas era um peso. Bebeu mas era só
metade: o outro tanto entornava-se pelo peito. Quando reparou, a aguardente
tinha quase desaparecido. Restava um quase nada lá no fundo dos potes. Entrou
em pânico: como explicar aos velhos? Como contar à aldeia que o ngovo se
desviara do seu destino? Tinha que encontrar maneira de emendar a boca, fechar
a desgraça que ela destapara.
Passou por um poço abandonado e meteu-se por dentro do
escuro. Lá em baixo, havia uma réstia de água estagnada, à espera da sua
esperteza. Acrescentada daquela água malcheirosa a bebida do milho voltaria a
encher os potes de barro. Os mortos não notariam a diferença, o paladar deles
está já esquecido dos saborosos pecados.
Moda os mineiros, pensou enquanto descia pelas paredes
do velho poço. Estava suspenso pelas mãos, os pés a procurarem o fundo, quando,
de repente, as paredes desabaram. Caíram pareciam o céu inteiro a desfazer-se
em areia e pó, o peso do mundo a pisar-lhe no peito. Mãe, vou ficar aqui em
baixo de embaixo, ninguém que me vai encontrar, chorava Jossias.
E ali ficou imóvel, soterrado, dormindo no subúrbio da
morte, expulso da luz e do ar. Horas de tempo, pensou no nunca mais. A
lembrança de Armanda veio socorrê-lo. Agarrou-se à frescura da recordação,
aquele rosto era a sua última crença.
E os outros quando viessem procurá-lo? Haviam de o
adivinhar subterrâneo, toupeirando a réstia de vida que lhe faltava?
Aguentariam descascar a terra até lhe encontrar?
Mas mesmo a esperança dele já não tinha vontade. Ser
salvo, para quê? Beber areia, afundar-se num poço, despedir-se do mundo, tudo
isso, não era nada comparado com o que vinha a seguir. Todos lhe negariam
desculpas. Mesmo Armanda.
Quando saísse ele havia de escolher o longe, viver na
distância, envelhecer sem nome nem história.
II
O azul todo das cheias
É o quê? Deus já desistiu dos homens? Não se importa da desgraça da terra?
A chuva está a chover até os poços começaram cuspir.
Mesmo os sapos e as cobras já não têm casa. E o velho pergunta:
- Por que não descansas sofrimento? Depois de depois
voltas mais outra vez...
Mas o destino da morte é ser sempre muita. E chove
mais, vão-se molhando as tardes de Novembro, o pilão e a esteira a pingarem
juntos no pátio.
O velho está sentado na sombra dos gemidos, só os seus
suspiros sonham. O resto é resignação que conspira. Pode-se assim tanto morrer?
Mas ele aprendera a espalhar na sua alma o remédio do
há de vir. E consolava-se:
- A farinha há de me visitar, eu sei.
Lentamente, as chuvas iam pousando em todo o lado. Os
rios agarravam-se com força ao céu e já nenhum xicuembo sabia desamarrar aquela
água. Talvez que o sol, do quente que lhe sobrava, levasse com ele todo aquele
azul. Mas não, o sol escorregava pelo zinco, sem beber quase nada. Passava com
a cerimónia de um estranho.
- A boca que o sol tem já não chega - lamentava o
velho.
III.
O salvamento
A água crescia, as coisas e os bichos era só nadarem. Quando tudo em volta era só fumo da água apareceu um barco a motor que trazia dois pretos e um branco. Foi este que falou. As coisas que disse foi no respeito que nunca ouvira. Que palavras eram essas, afinal? Sempre foram asneiras a subirem-lhe no nome, a língua dos portugueses a disparar-lhe na família. Agora, essa língua não tinha maneira de patrão?
- Deve ser maneira de me levar longe da machamba,
afastar-me das minhas coisas.
Ou parece não. Os homens queriam que ele subisse para
o barco, vinham salvá-lo.
O velho coçou a cabeça, arrastando a mão de trás para
a frente.
- Ir onde, se depois da água é só água? Não estão ver
que Deus nos quer peixando?
Os pretos falaram atrás, mesma coisa, as pessoas que
não viessem no barco haviam de morrer, era com certeza. O velho num sorriso
incrédulo:
- Isto é salvar-me? Salvar de quê?
E o velho lembrava-se do desastre nas minas do John, o
fogo a espalhar desgraça nas galerias, a devorar vidas e corpos, sim, aquilo
era morrer. Quando veio a brigada de salvamento ele sentou-se como uma criança
perdida, a chorar. Mas os homens da brigada não pararam para o socorrer,
prosseguiram à procura de outras vidas mais valiosas. Um outro mineiro puxou-o
pelos braços e gritou-lhe:
- Queres ser lenha, homem?
Lenha? A madeira é lenha antes mesmo de arder. Ser
lenha, compreendeu, é morrer assim só, sem ninguém para nos chorar. Só o seu
número seria riscado na lista dos contratados. Mas o fumo entrou-lhe pela
tristeza e os pulmões ordenaram que procurasse outro lugar. Um homem salva-se
se é vontade da sua vida. Os outros são só o alimento dessa vontade.
E assim ficou de estar vivo até hoje.
Salvaram Jossias por duas vezes. Salvaram-no da morte,
não o salvaram da vida. Para os outros, para os que o tinham ajudado, foram
prémios, fotos no jornal. Ninguém falou que ele, Jossias Damião Jossene,
continuava igual como antes, encostado à miséria.
- Salvar um alguém deve ser serviço completo -
concluíra. - Não é levantar a pessoa e depois abandonar sem querer saber o
depois. Não chega ficar vivo. Palavra da minha honra. Viver é mais.
E assim se decidira Jossias sobre o assunto da morte,
não-morte.
Agora, neste caso, mudar para onde? A seguir é só
água, o lugar onde saiu esse barco também é água. Mesmo isso já não é barco, é
uma ilha com motor. Se é para morrer então prefiro esta morte que veio nadar
até à minha casa. Esta terra aqui em baixo já tem as minhas mãos, a minha vida
está enterrada neste chão, só falta agora o meu corpo, só.
A equipa de salvamento impacientava-se com a conversa
do velho. O gajo o que é que quer?, perguntava o branco. Os outros não
traduziam, riam-se apenas. O velho é maluco, vamos carregá-lo à força. Não
temos tempo, há outras pessoas para recolher, o velho já perdeu o juízo.
- Deixem-me ficar, não posso morrer longe da minha
vida.
Puxaram-no pelas axilas, sentaram-no no banco traseiro
do barco e cobriram-no com uma manta.
- Não tens família?
Era o branco. Família? Talvez vocês, agora, são a
minha família, aguentaram esta maçada de salvar-me. Apeteceu-lhe responder mas
estava a tremer de mais.
- Perguntem-lhe na vossa língua, se a família não está
por aqui, nas redondezas.
Perguntaram-lhe. Demorou a responder, queria usar bom
português. Agarrou-se com força à velha manta e pôs os olhos naquele mar em
volta como se inquirisse pelas coisas que ele cobria.
- Dentro de água não está frio. Porquê não me deixam
lá?
Os outros riram-se. Colocaram-lhe mais uma manta sobre
os ombros e passaram-lhe uma chávena de chá bem quente. Pelos dedos magros,
segurando trémulos a chávena de alumínio, subiu-lhe um estranho calor que não
sabia traduzir. E veio-lhe a vontade de ficar para sempre quase naquele barco.
Desejou que a viagem não tivesse fim como se o salvassem do tempo e não das
águas, como se o tivessem liberto não da norte mas da sua terrível e solitária
espera.
Com olhos de menino, fixou o escuro engolindo a terra,
a tarde anoitecendo tudo.
A mentira da noite é matar o cansaço dos homens,
pensou enquanto fechava os olhos.
O escritor Mia Couto
© Jorge
amaral/Global Imagens
Sem comentários:
Enviar um comentário