Centenário de José Saramago


Prémio Nobel da Literatura


8 de outubro de 1998 a Academia Sueca anunciava em comunicado à imprensa: o Prémio Nobel de Literatura 1998 é concedido a José Saramago, escritor «que, através de parábolas sustentadas pela imaginação, compaixão e ironia, nos permite apreender continuamente uma realidade fugidia»


JOSÉ SARAMAGO nasceu na Golegã em 16 deDezembro de 1932, no seio de uma família de trabalhadores rurais. Veio para Lisboa muito novo, onde fez o curso secundário. Foi director literário numa editora, colaborou na revista Seara Nova, no vespertino Diário de Lisboa e foi director- adjunto do matutino Diário de Noticias (de Abril a Novembro de 1975). A partir de 1976 dedicou-se completamente à literatura. Os seus romances têm sido publicados no Brasil, Espanha, Itália, Alemanha, Rússia, França, etc. Principais prémios:

Levantado do Chão (1980), Prémio Cidade de Lisboa;

Memorial do Convento (1982), Prémio Literário Município de Lisboa; 

Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), Prémio Pen Club Português.

Residiu em Espanha (ilha de Lanzarote, Canárias) nos últimos anos da sua vida.



Memorial do Convento

D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou.

Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos se confia. que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça.

Além disso, quem se extenua a implorar ao céu um filho não é o rei, mas a rainha, e também por duas razões. A primeira razão é que um rei, e ainda mais se de Portugal for, não pede o que unicamente está em seu poder dar, a segunda razão porque sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber, há-de ser naturalmente suplicante, tanto em novenas organizadas como em orações ocasionais.

 Mas nem a persistência do rei, que, salvo dificultação canónica ou impedimento fisiológico, duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever real e conjugal, nem a paciência e humildade da rainha que, a mais das preces, se sacrifica a uma imobilidade total. 

Depois de retirar-se de si e da cama o esposo, para que se não perturbem em seu gerativo acomodamento os líquidos comuns, escassos os seus por falta de estímulo e tempo, e cristianíssima retenção moral, pródigos os do soberano, como se espera de um homem que ainda não fez vinte e dois anos, nem isto nem por causa deste cobertor, sufocante até no frio Fevereiro, que D. João V não passa toda a noite com a rainha, ao princípio sim, por ainda superar a novidade ao incómodo, que não era pequeno sentir-se banhado em suores próprios e alheios, com uma rainha tapada por cima da cabeça, recozendo cheiros e secreções. D. Maria Ana, que não veio de um país quente, não suporta o clima deste. Cobre-se toda com o imenso e altíssimo cobertor, e assim fica, enroscada como toupeira que encontrou pedra no caminho e está a decidir para que lado há-de continuar a escavação da galeria.

Vestem a rainha e o rei camisas compridas, que pelo chão arrastam, a do rei somente a fímbria bordada, a da rainha bom meio palmo mais, para que nem a ponta dos pés se veja, o dedo grande ou os outros, das impudicícias conhecidas talvez seja esta a mais ousada. D. João V conduz D. Maria Ana ao leito, leva-a pela mão como no baile o cavaleiro à dama, e antes de subirem os degrauzinhos, cada um de seu lado, ajoelham-se e dizem as orações acautelantes necessárias, para que não morram no momento do acto carnal, sem confissão, para que desta nova tentativa venha a resultar fruto, e sobre este ponto tem D. João V razões dobradas para esperar, confiança em Deus e no seu próprio vigor, por isso está dobrando a fé com que ao mesmo Deus impetra sucessão. Quanto a D. Maria Ana, é de crer que esteja rogando os mesmos favores, se porventura não tem motivos particulares que os dispensem e sejam segredo do confessionário. Já se deitaram. Esta é a cama que veio da Holanda quando a rainha veio da Áustria, mandada fazer de propósito pelo rei, a cama, a quem custou setenta e cinco mil cruzados, que em Portugal não há artífices de tanto primor, e, se os houvesse, sem dúvida ganhariam menos. A desprevenido olhar nem se sabe se é de madeira o magnífico móvel, coberto como está pela armação preciosa, tecida e bordada de florões e relevos de ouro, isto não falando do dossel que poderia servir

para cobrir o papa. Quando a cama aqui foi posta e armada ainda não havia percevejos nela, tão nova era, mas depois, com o uso, o calor dos corpos, as migrações no interior do palácio, ou da cidade para dentro, donde este bichedo vem é que não se sabe, e sendo tão rica de matéria e adorno não se lhe pode aproximar um trapo a arder para queimar o enxame, não há mais remédio, ainda não o sendo, que pagar a Santo Aleixo cinquenta réis por ano, a ver se livra a rainha e a nós todos da praga e da coceira. Em noites que vem el-rei, os percevejos começam a atormentar mais tarde por via da agitação dos colchões, são bichos que gostam de sossego e gente adormecida. Lá na cama do rei estão outros à espera do seu quinhão de sangue, que não acham nem pior nem melhor que o restante da cidade, azul ou natural.

D. Maria Ana estende ao rei a mãozinha suada e fria, que mesmo tendo aquecido debaixo do cobertor logo arrefece ao ar gélido do quarto, e el-rei, que já cumpriu o seu dever, e tudo espera do convencimento e criativo esforço com que o cumpriu, beija-lha como a rainha e futura mãe, se não presumiu demasiado frei António de S. José. É D. Maria Ana quem puxa o cordão da sineta, entram de um lado os camaristas do rei, do outro as damas, pairam cheiros diversos na atmosfera pesada, um deles que facilmente identificam, que sem o que a isto cheira não são possíveis milagres como o que desta vez se espera, porque a outra, e tão falada, incorpórea fecundação, foi uma vez sem exemplo, só para que se ficasse a saber que Deus, quando quer, não precisa de homens, embora não possa dispensar-se de mulheres.

Ainda que insistentemente tranquilizada pelo confessor, tem D. Maria Ana, nestas ocasiões, grandes escrúpulos de alma. Retirados el-rei e os camaristas, deitadas já as damas que a servem e lhe protegem o sono, sempre cuida a rainha que seria sua obrigação levantar-se para as últimas orações, mas, tendo de guardar o choco por conselho dos médicos, contenta-se com murmurá-las infinitamente, passando cada vez mais devagar as contas do rosário, até que adormece no meio duma ave-maria cheia de graça, ao menos com essa foi tudo tão fácil, bendito seja o fruto do vosso ventre, e é no do seu ansiado próprio que está pensando, ao menos um filho, Senhor, ao menos um filho. Deste involuntário orgulho nunca fez confissão, por ser distante e involuntário, tanto que se fosse chamada a juízo juraria, com verdade, que sempre se dirigira à Virgem e ao ventre que ela teve. São meandros do inconsciente real, como aqueles outros sonhos que sempre D. Maria Ana tem, vá lá explicá-los, quando el-rei vem ao seu quarto, que é ver-se atravessando o Terreiro do Paço para o lado dos açougues, levantando a saia à frente e patinhando numa lama aguada e pegajosa que cheira ao que cheiram os homens quando descarregam, enquanto o infante D. Francisco, seu cunhado, cujo antigo quarto agora ocupa, alguma assombração lhe ficando, dança em redor dela, empoleirado em andas, como uma cegonha negra. Também deste sonho nunca deu contas ao confessor, e que contas saberia ele dar-lhe por sua vez, sendo, como é, caso omisso no manual da perfeita confissão. Fique D. Maria Ana em paz, adormecida, invisível sob a montanha de penas, enquanto os percevejos começam a sair das fendas, dos refegos, e se deixam cair do alto dossel, assim tornando mais rápida a viagem. Também D. João V sonhará esta noite. Verá erguer-se do seu sexo uma árvore de Jessé, frondosa e toda povoada dos ascendentes de Cristo, até ao mesmo Cristo, herdeiro de todas as coroas, e depois dissipar-se a árvore e em seu lugar levantar-se, poderosamente, com altas colunas, torres sineiras; cúpulas e torreões, um convento de franciscanos, como se pode reconhecer pelo hábito de frei António de S. José, que está abrindo, de par em par, as portas da igreja.

Não é vulgar em reis um temperamento assim, mas Portugal sempre foi bem servido deles.

Bem servido de milagres, igualmente. Ainda é cedo para falar deste que se prepara, aliás milagre não tanto, mas simples obséquio divino, descimento de olhar piedoso e propiciatório para um ventre sáfaro, qual há-de ser o nascimento do infante na hora própria, mas é justamente tempo de mencionar veros e certificados milagres que, por virem da mesma e ardentíssima sarça franciscana, bem auguram da promessa do rei.

Veja-se o célebre caso da morte de frei Miguel da Anunciação, provincial eleito que foi da ordem terceira de S. Francisco, cuja eleição, diga-se de passagem, mas não fora de propósito, se fez com acesa guerra que contra ela e ele levantou a Paroquial de Santa Maria Madalena, por obscuros ciúmes, em tal sanha que à morte de frei Miguel ainda corriam pleitos e não se sabe quando, de vez, seriam julgados, se é que teriam fim, entre sentença e recurso, entre conselho e agravo, até que a morte viesse encerrar o processo, como veio a suceder. É certo que não morreu o frade de coração despedaçado, mas de maligna, que seria tifo ou tifóide, senão outra febre sem nome, remate comum de vida em cidade de tão poucas fontes de água para beber e onde os galegos não se duvidam de ir encher os barris à fonte dos cavalos, e assim morrem imerecidamente provinciais. Porém, era frei Miguel da Anunciação de tão compassiva natureza que, mesmo depois de morto, pagou o mal com o bem, e se vivo fizera caridades, defunto obrava maravilhas, sendo a primeira desmentir os médicos que temiam se corrompesse o corpo aceleradamente e por isso recomendaram abreviada sepultura, que não se corrompeu tal o carnal despojo, antes por espaço de três dias inteiros embalsamou a igreja de Nossa Senhora de Jesus onde esteve exposto, com suavíssimo cheiro, e não se lhe enrijeceu o cadáver, pelo contrário, brandamente os membros todos se deixavam mover, como se vivo estivesse.

Segundas e terceiras maravilhas, mas de valor primeiríssimo, foram os milagres propriamente ditos tão assinalados e ilustres que acorreu o povo de toda a cidade a observar o prodígio e a aproveitar dele, pois se autentica que na dita igreja foi dada vista a cegos e pés a mancos, e era tanta a afluência de mundo que nos degraus do adro se davam punhadas e punhaladas para entrar, de que alguns perderam a vida, que depois nem por milagre lhes seria restituída. Ou talvez sim, se, passados três dias, e sendo grande o alarme, dali não tivessem levado o corpo, às ocultas, e às ocultas o enterraram. Privados da esperança de cura enquanto não constasse o passamento doutro bem-aventurado, no mesmo lugar se esbofetearam de desespero e fé lograda mudos e manetas, se a estes lhes sobrava mão, em gritos todos e invocações a quantos santos, até que os padres saíram fora a benzer o ajuntamento, e com essa suficiência, à falta de melhor, se foram uns e outros.

Mas isto, confessemo-lo sem vergonha, é uma terra de ladrões, olho vê, mão pilha, e sendo a fé tanta, ainda que nem sempre recompensada, maior é o descaro e a impiedade com que se salteiam igrejas, como foi ainda o ano passado em Guimarães, também na de S. Francisco, que, por tão vultosos bens ter desprezado em vida, tudo consente que lhe levem na eternidade, o que vale à ordem é a vigilância de Santo António, que esse resigna-se mal a que lhe rapem altares e capelas onde estiver, como em Guimarães se viu e em Lisboa se há-de ver.







O Ano da Morte de Ricardo Reis

(José Saramago)

Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, com uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boulogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual a aldeia. Não é grande embarcação, desloca catorze mil toneladas, mas aguenta bem o mar, como outra vez se provou nesta travessia, em que, apesar do mau tempo constante, só os aprendizes de viajante oceânico enjoaram, ou os que, mais veteranos, padecem de incurável delicadeza do estômago, e, por ser tão caseiro e confortável nos arranjos interiores, foi-lhe dado, carinhosamente, como ao Highland Monarch, seu irmão gémeo, o íntimo apelativo de vapor de família. Ambos estão providos de tombadilhos espaçosos para sport e banhos de sol, pode-se jogar, por exemplo, o cricket, que, sendo jogo de campo, também é exercitável sobre as ondas do mar, deste modo se demonstrando que ao império britânico nada é impossível, assim seja essa a vontade de quem lá manda. Em dias de amena meteorologia, o Highland Brigade é jardim de crianças e parada de velhos, porém não hoje, que está chovendo e não iremos ter outra tarde. Por trás dos vidros embaciados de sal, os meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe rasa sobre colinas, como se só de casas térreas construída, por acaso além um zimbório alto, uma empena mais esforçada, um vulto que parece ruína de castelo, salvo se tudo isto é ilusão, quimera, miragem criada pela movediça cortina das águas que descem do céu fechado.

As crianças estrangeiras, a quem mais largamente dotou a natureza da virtude da curiosidade, querem saber o nome do lugar, e os pais informam-nas, ou declinam-no as amas, as nurses, as bonnes, as fräuleins, ou um marinheiro que passava para ir à manobra, Lisboa, Lisbon, Lisbonne, Lissabon, quatro diferentes maneiras de enunciar, fora as intermédias e imprecisas, assim ficaram os meninos a saber o que antes ignoravam, e isso foi o que já sabiam, nada, apenas um nome, aproximativamente pronunciado, para maior confusão das juvenis inteligências, com a acento próprio de argentinos, se deles se tratava, ou de uruguaios, brasileiros e espanhóis, que, escrevendo certo Lisboa no castelhano ou português de cada qual, dizem cada um sua coisa, fora do alcance do ouvido comum e das imitações da escrita. Quando amanhã cedo o Highland Brigade sair a barra, que ao menos haja um pouco de sol e de céu descoberto, para que a parda neblina deste tempo astroso não obscureça por completo, anda à vista de terra, a memória já esvaecente dos viajantes que pela primeira vez aqui passaram, estas crianças que repetem Lisboa, por sua própria conta transformando o nome noutro nome, aqueles adultos que franzem o sobrolho e se arrepiam com a geral humidade que repassa as madeiras e os ferros, como se o Highland Brigade viesse a escorrer do fundo do mar, navio duas vezes fantasma.

Por gosto e vontade, ninguém haveria de querer ficar neste porto. São poucos os que vão descer. O vapor atracou, já arrearam a escada do portaló, começam a mostrar-se em baixo, sem pressa, os bagageiros e os descarregadores, saem do refúgio dos alpendres e guaritas os guardas-fiscais de serviço, assomam os alfandegueiros. A chuva abrandou, só quase nada.

Juntam-se no alto da escada os viajantes, hesitando, como se duvidassem de ter sido autorizado o desembarque, se haverá quarentena, ou temessem os degraus escorregadios, mas é a cidade silenciosa que os assusta, porventura morreu a gente nela e a chuva só está caindo para diluir em lama o que ainda ficou de pé. Ao comprido do cais, outros barcos atracados luzem mortiçamente por trás das vigias baças, os paus-de-carga são ramos esgalhados de árvores, negros, os guindastes estão quietos. É domingo. Para além dos barracões do cais começa a cidade sombria, recolhida em frontarias e muros, por enquanto ainda defendida da chuva, acaso movendo uma cortina triste e bordada, olhando para fora com olhos vagos, ouvindo gorgolhar a água dos telhados, algeroz abaixo, até ao basalto das valetas, ao calcário nítido dos passeios, às sarjetas pletóricas, levantadas algumas, se houve inundação.

Descem os primeiros passageiros. De ombros encurvados sob a chuva monótona, trazem sacos e maletas de mão, e têm o ar perdido de quem viveu a viagem como um sonho de imagens fluidas, entre mar e céu, o metrónomo da proa a subir e a descer, o balanço da vaga, o horizonte hipnótico. Alguém transporta ao colo uma criança, que pelo silêncio portuguesa deve ser, não se lembrou de perguntar onde está, ou avisaram-na antes, quando, para adormecer depressa no beliche abafado, lhe prometeram uma cidade bonita e um viver feliz, outro conto de encantar, que a estes não correram bem os trabalhos da emigração. E uma mulher idosa, que teima em abrir um guarda-chuva, deixa cair a pequena caixa de folha verde que trazia debaixo do braço, com forma de baú, e contra as pedras do cais foi desfazer-se o cofre, solta a tampa, rebentado o fundo, não continha nada de valor, só coisas de estimação, uns trapos coloridos, umas cartas, retratos que voaram, umas contas que eram de vidro e se partiram, novelos brancos agora maculados, sumiu-se um deles entre o cais e o costado do barco, é uma passageira da terceira classe.

Consoante vão pondo pé em terra, correm a abrigar-se, os estrangeiros murmuram contra o temporal, como se fôssemos nós os culpados deste mau tempo, parece terem-se esquecido de que nas franças e inglaterras deles costuma ser bem pior, enfim, a estes tudo lhes serve para desdenharem dos pobres países, até a chuva natural, mais fortes razões teríamos nós de nos queixarmos e aqui estamos calados, maldito inverno este, o que por ai vai de terra arrancada aos campos férteis, e a falta que ela nos faz, sendo tão pequena a nação. Já começou a descarga das bagagens, sob as capes rebrilhantes os marinheiros parecem manipanços de capuz, e em baixo os bagageiros portugueses mexem-se mais à ligeira, é o bonezinho de pala, a veste curta, de oleado, assamarrada, mas tão indiferentes à grande molha que o universo espantam, talvez este desdém de confortos leve a compadecerem-se as bolsas dos viajantes, porta-moedas como se diz agora, e suba com a compaixão a gorjeta, povo atrasado, de mão estendida, vende cada um o que tiver de sobejo, resignação, humildade, paciência, assim continuemos nós a encontrar quem de tais mercadorias faça no mundo comércio. Os viajantes passaram à alfândega, poucos como se calculava, mas vai levar seu tempo saírem dela, por serem tantos os papéis a escrever e tão escrupulosa a caligrafia dos aduaneiros de piquete, se calhar os mais rápidos descansam ao domingo.

A tarde escurece e ainda agora são quatro horas, com um pouco mais de sombra se faria a noite, porém aqui dentro é como se sempre o fosse, acesas durante todo o dia as fracas lâmpadas, algumas queimadas, aquela está há uma semana assim e ainda não a substituíram.

As janelas, sujas, deixam transluzir uma claridade aquática. O ar carregado cheira a roupas molhadas, a bagagens azedas, à serapilheira dos fardos, e a melancolia alastra, faz emudecer os viajantes, não há sombra de alegria neste regresso. A alfândega é uma antecâmara, um limbo de passagem, que será lá fora.

Um homem grisalho, seco de carnes, assina os últimos papéis, recebe as cópias deles, pode-se ir embora, sair, continuar em terra firme a vida. Acompanha-o um bagageiro cujo aspecto físico não deve ser explicado em pormenor, ou teríamos de prosseguir infinitamente o exame, para que não se instalasse a confusão na cabeça de quem viesse a precisar de distinguir um do outro, se tal se requer, porque deste teríamos de dizer que é seco de carnes, grisalho, e moreno, e de cara rapada, como daquele foi dito já, contudo tão diferentes, passageiro um, bagageiro outro. Carrega este a mala grande num carrinho metálico, as duas outras, pequenas em comparação, suspendeu-as do pescoço com uma correia que passa  pela nuca, como um jugo ou colar de ordem. Cá fora, sob a protecção do beiral largo, pousa a carga no chão e vai procurar um táxi, não costuma ser necessário, habitualmente há-os por ali, à chegada dos vapores. O viajante olha as nuvens baixas, depois os charcos no terreno irregular, as águas da doca, sujas de óleos, cascas, detritos vários, e é então que repara em uns barcos de guerra, discretos, não contava que os houvesse aqui, pois o lugar próprio desses navegantes é o mar largo, ou, não sendo o tempo de guerra ou de exercícios dela, no estuário, largo de sobra para dar fundeadouro a todas as esquadras do mundo, como antigamente se dizia e talvez ainda hoje se repita, sem cuidar de ver que esquadras são.

Outros passageiros saíam da alfândega, acolitados pelos seus descarregadores, e então surgiu o táxi espadanando águas debaixo das rodas.

Bracearam os pretendentes alvoroçados, mas o bagageiro saltou do estribo, fez um gesto largo, É para aquele senhor, assim se mostrando como até a um humilde serventuário do porto de Lisboa, quando a chuva e as circunstâncias ajudem, é dado ter nas mãos sóbrias a felicidade, em um momento dá-la ou retirá-la, como se acredita que Deus a vida. Enquanto o motorista baixava o porta-bagagens fixado na traseira do automóvel, o viajante perguntou, pela primeira vez se lhe notando um leve sotaque brasileiro, Por que estão na doca aqueles barcos, e o bagageiro respondeu, ofegando, ajudava o motorista a içar a mala grande, pesada, Ahn, é a doca da marinha, foi por causa do mau tempo, rebocaram-nos para aqui anteontem, senão eram bem capazes de garrar e ir encalhar a Algés. Chegavam outros táxis, tinham-se atrasado, ou o vapor atracara antes da hora esperada, agora havia no terreiro feira franca, tornara-se banal a satisfação da necessidade, Quanto lhe devo, perguntou o viajante, Por cima da tabela é o que quiser dar, respondeu o bagageiro, mas não disse que tabela fosse a tal nem o preço real do serviço, fiava-se na fortuna que protege os audaciosos, ainda que descarregadores, Só trago dinheiro inglês comigo, Ah, isso tanto faz, e na mão direita estendida viu pousar dez xelins, moeda que mais do que o sol brilhava, enfim logrou o astro-rei vencer as nuvens que sobre Lisboa pesavam. Por causa dos grandes carregos e das comoções profundas, a primeira condição para uma longa e próspera vida de bagageiro é ter um coração robusto, de bronze, ou redondo teria caído o dono deste, fulminado. Quer retribuir a excessiva generosidade, ao menos não ficar em dívida de palavras, por isso acrescenta informações que lhe não pediram, junta-as aos agradecimentos que não lhe ouvem, São contratorpedeiros, senhor, nossos, portugueses, é o Tejo, o Dão, o Lima, o Vouga, o Tâmega, o Dão é aquele mais perto. Não fazem diferença, podiam mesmo trocar-lhes os nomes, todos iguais, gémeos, pintados de cinzento-morte, alagados de chuva, sem sombra viva nos conveses, as bandeiras molhadas como trapos, salvo seja e sem ao respeito querer faltar, mas enfim, ficámos a saber que o Dão é este, acaso tornaremos a ter notícias dele.

O bagageiro levanta o boné e agradece, o táxi arranca, o motorista quer que lhe digam, Para onde, e esta pergunta, tão simples, tão natural, tão adequada à circunstância e ao lugar, apanha desprevenido o viajante, como se ter comprado a passagem no Rio de Janeiro tivesse sido e pudesse continuar a ser resposta para todas as questões, mesmo aquelas, passadas, que em seu tempo não encontraram mais que o silêncio, agora mal desembarcou logo vê que não, talvez porque lhe fizeram uma das duas perguntas fatais, Para onde, a outra, e pior, seria, Para quê. O motorista olhou pelo retrovisor, julgou que o passageiro não ouvira, já abria a boca para repetir, Para onde, mas a resposta chegou primeiro, ainda irresoluta, suspensiva, Para um hotel, Qual, Não sei, e tendo dito, Não sei, soube o viajante o que queria, com tão firme convicção como se tivesse levado toda a viagem a ponderar a escolha, Um que fique perto do rio, cá para baixo, Perto do rio só se for o Bragança, ao princípio da Rua do Alecrim, não sei se conhece, Do hotel não me lembro, mas a rua sei onde é, vivi em Lisboa, sou português, Ah, é português, pelo sotaque pensei que fosse brasileiro, Percebe-se assim tanto, Bom, percebe-se alguma coisa, Há dezasseis anos que não vinha a Portugal, Dezasseis anos são muitos, vai encontrar grandes mudanças por cá, e com estas palavras calou-se bruscamente o motorista.

Ao viajante não parecia que as mudanças fossem tantas. A avenida por onde seguiam coincidia, no geral, com a memória dela, só as árvores estavam mais altas, nem admira, sempre tinham sido dezasseis anos a crescer, e mesmo assim, se na opaca lembrança guardava frondes verdes, agora a nudez invernal dos ramos apoucava a dimensão dos renques, uma coisa dava para a outra.

A chuva rareara, só algumas gotas dispersas caíam, mas no espaço não se abrira nem uma frincha de azul, as nuvens não se soltaram umas das outras, fazem um extensíssimo e único tecto cor de chumbo.

Tem chovido muito, perguntou o passageiro, É um dilúvio, há dois meses que o céu anda a desfazer-se em água, respondeu o motorista, e desligou o limpa-vidros. Poucos automóveis passavam, raros carros eléctricos, um ou outro pedestre que desconfiadamente fechava o guarda-chuva, ao longo dos passeios grandes charcos formados pelo entupimento das sarjetas, porta com porta algumas tabernas abertas, labregas, as luzes viscosas cercadas de sombra, a imagem taciturna de um copo sujo de vinho sobre um balcão de zinco. Estas frontarias são a muralha que oculta a cidade, e o táxi segue ao longo delas, sem pressa, como se andasse à procura duma brecha, dum postigo, duma parta da traição, a entrada para o labirinto. Passa devagar o comboio de Cascais, travando preguiçoso, ainda vinha com velocidade bastante para ultrapassar o táxi, mas fica para trás, entra na estação quando o automóvel já está a dar a volta ao largo, e o motorista avisa, O hotel é aquele, à entrada da rua.

Parou em frente de um café, acrescentou, O melhor será ir ver primeiro se há quartos, não posso esperar mesmo à porta por causa dos eléctricos. O passageiro saiu, olhou o café de relance, Royal de seu nome, exemplo comercial de saudades monárquicas em tempo de república, ou remanescência do último reinado, aqui disfarçado de inglês ou francês, curioso caso este, olha-se e não se sabe como dizer a palavra, se roial ou ruaiale, teve tempo de debater a questão porque já não chovia e a rua é a subir, depois imaginou-se regressando do hotel, com quarto ou ainda sem ele, e do táxi nem sombra, desaparecido com as bagagens, as roupas, os objectos de uso, os seus papéis, e a si mesmo perguntou como viveria se o privassem desses e todos os outros bens. Já ia vencendo os degraus exteriores do hotel quando compreendeu, por estes pensamentos, que estava muito cansado, era o que sentia, uma fadiga muito grande, um sono da alma, um desespero, se sabemos com bastante suficiência o que isso seja para pronunciar a palavra e entendê-la.

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