As fotografias inéditas da escravidão que Sebastião
Salgado encontrou nas minas de ouro do Brasil





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© Sebastião SALGADO
É uma espécie de regresso às origens: numa
edição especial, o fotógrafo brasileiro revela novas perspectivas da corrida ao
ouro na selva amazónica, revisitando o trabalho que lançou a sua carreira
internacional
Cor. Brilho. Modernidade. Esta era a
santa trindade da Imprensa da década de 1980, com as grandes revistas
internacionais a apostarem milhões na reconversão para as páginas a cores.
Por isso, quando Sebastião Salgado
explicou a Neil Burgess (que acabava de ser nomeado diretor da Magnum, em
Londres, em 1986) que pretendia dedicar os anos seguintes a fotografar apenas a
preto-e-branco as vidas de trabalhadores pobres e explorados em 42 locais do
mundo, ele deitou as mãos à cabeça. Comercialmente, o projeto do fotógrafo
brasileiro tinha tudo para ser um desastre.
Alguns meses mais tarde, Salgado
telefonou-lhe contando que acabara de regressar do Brasil, onde decidira
iniciar o projeto que daria origem ao livro Trabalho. Agora, dizia,
precisava que a Magnum vendesse algumas dessas fotografias, para prosseguir
para os 41 destinos que lhe faltavam.
“Perguntaram quanto custava o trabalho e
eu pedi o dobro do portefólio mais caro que já tinha sido vendido pela Magnum…
Estenderam-me logo a mão: ‘Ok’”
No escritório da Magnum foi entregue uma
caixa com 40 fotografias impressas em 24 x 30 cm, e Burgess ficou deslumbrado,
como veio a contar, em 2019, ao British Journal of Photography.
Ligou para Salgado, que havia sugerido tentar a publicação na Granta,
e disse-lhe que uma das grandes revistas iria comprar a reportagem. Ele achava
improvável porque a serra Pelada já tinha sido fotografada por outros,
incluindo pelo correspondente da Magnum no Brasil, Miguel Rio Branco. Mas todos
fizeram fotos a cores, passando apenas um dia ou dois a registar o espetáculo
de 50 mil homens a procurar ouro na lama, no meio da Amazónia.

Uma
das fotos inéditas publicada na nova edição de “Gold”, revelando o formigueiro
de homens que procurava ouro na Amazónia brasileira
© Sebastião SALGADO
© Sebastião SALGADO
Salgado, por outro lado, fotografou a
preto-e-branco e viveu quatro semanas com os “peões” num “barraco”, acompanhou
todas as fases daquele trabalho colossal, ouviu-os falar dos seus sonhos e dos
monstros que os atormentavam.
Essa imersão nos assuntos retratados foi
sempre condição essencial para o trabalho do brasileiro, mesmo quando
fotografava para as agências de notícias (e a cores), em que iniciou a sua
carreira, no final da década de 1970. Em 1983, durante a grande vaga de fome na
Etiópia, por exemplo, fixou-se num campo de subnutridos e criticava os
jornalistas que mal contactavam com a realidade que pretendiam retratar – viu
34 equipas de reportagem a chegarem e a partirem durante os dez dias em que ali
permaneceu.
“A paciência e a concentração
necessárias para permanecer num só lugar, para tentar ver além das primeiras
impressões, para se forçar a olhar para um assunto de maneiras diferentes, sob
diferentes luzes, e depois voltar e olhar novamente, é algo essencial”,
considera o ex-diretor da Magnum, que, uma hora depois de receber as
fotografias de Salgado, estava a entrar no gabinete do editor de arte do Sunday
Times.
Michael Rand, um homem pioneiro na
introdução da cor nos suplementos de fim de semana, seria, talvez, o pior
interlocutor possível para a venda de um portefólio a preto-e-branco, e Neil
Burgess não havia revelado nada sobre o trabalho que iria apresentar, temendo
que Rand nem sequer aceitasse vê-lo.

Durante uns instantes, depois de dispor
sobre a mesa algumas das fotografias da corrida ao ouro no Brasil, instalou-se
um silêncio incómodo na sala e Burgess temeu o pior. Mas, quando olhou para o
rosto de Michael Rand, percebeu que era “um silêncio bom”, quase reverencial.
Poucas foram as vezes que ele sentiu nos editores internacionais esse respeito
que se mistura com o encantamento, como uma espécie de feitiço que conduz à
rendição total. “Perguntaram quanto custava e eu pedi o dobro do preço do
portefólio mais caro que já tinha sido vendido pela Magnum… Estenderam-me logo
a mão: ‘Ok’.”
A reação foi semelhante na revista
do New York Times, quando o editor de fotografia, Peter Howe,
mostrou as fotos de Salgado à direção do jornal. “Em toda a minha carreira,
nunca vi os diretores reagirem a um trabalho daquela forma”, escreveu Howe, no
mês passado, a propósito da nova edição em livro desta reportagem, com a
chancela da Taschen.
Na manhã seguinte à publicação, os
telefones da Magnum não paravam. Editores de todo o mundo queriam comprar as
fotografias e, a partir de então, Sebastião Salgado teve financiamento
garantido para percorrer o mundo e ir publicando, reportagem a reportagem, o
portefólio que, anos depois, seria agregado na obra Trabalho.

O retrato da escravidão a que aqueles
homens se sujeitavam viria a garantir a sua liberdade como autor. Quem viu as
fotografias do formigueiro de homens cobertos de lama naquela mina de ouro
nunca mais esqueceu o nome de quem estava atrás da câmara.
Salgado também guardou para sempre o que
sentiu na serra Pelada. “Ali tive uma visão dilacerada e definitiva do
bicho-homem: 50 mil criaturas esculpidas em lama e sonho”, escreveu na
introdução de Trabalho.
“Só se ouvia o rumor humano, murmúrios e
gritos silenciados e o ruído de pás e enxadas impulsadas por mãos humanas,
nenhum som de máquina.” Num local onde estavam proibidas as armas de fogo, o
álcool e as mulheres, “havia uma indizível necessidade de tudo, de afeto, de
calor humano. Havia um perigo constante e uma vida sem consolo. Escravos da
ilusão, revolvendo a terra”.
Ali tive uma visão dilacerada e
definitiva do bicho-homem: 50 mil criaturas esculpidas em lama e sonho
SEBASTIÃO SALGADO
Só permanecendo e conquistando a
confiança dos homens que Salgado pretendia retratar foi possível fixar em
película a esperança e a violência latentes naquela cratera com contornos
irreais, de outro mundo ou de outros tempos.
Só assim foi possível ver além da lama
que cobria aqueles milhares de corpos e conhecer histórias únicas, como a do
dirigente sindical que liderava a ala dos mineiros homossexuais. “Era um
valente, respeitado por todos, e sonhava encontrar ouro e ir para Paris”,
recorda Salgado. O seu grande sonho era pôr seios de silicone. “Ninguém, como
os franceses, para este tipo de operação. Os de Paris são os seios mais lindos
do mundo”, dizia.
Provavelmente este mineiro nunca terá
saído do Pará, como a grande maioria dos “peões” que ali perdeu anos de vida a
correr atrás de uma miragem. A serra Pelada “secou” pouco tempo depois, e
desses tempos restam apenas as lendas sobre pepitas do tamanho de couves – e as
imagens que Salgado nos deu.

Dois
livros e uma exposição
Sebastião Salgado voltou a olhar para os
400 rolos fotográficos que trouxe da serra Pelada, em 1987, para selecionar as
300 imagens (31 das quais inéditas) que integram o novo livro Gold,
publicado, em novembro de 2019, pela Taschen, em três versões: uma para o
público em geral (€50) e outras duas para colecionadores. A edição XXL custa
€800 e cada livro está numerado e assinado pelo autor; a Art Edition, numa
caixa em tons de terra, com uma fotografia impressa assinada pelo fotógrafo,
custava 5000€ (já está esgotada). Editado em várias línguas, o livro tem uma
edição trilingue (português, italiano e espanhol), com um texto de
enquadramento do jornalista Alan Riding, antigo correspondente internacional
do New York Times.

Em simultâneo, foi também criada uma
exposição com 56 imagens inéditas, inaugurada em São Paulo, no Brasil, não
havendo ainda informação sobre a sua passagem por Portugal, embora existam já
datas para a sua apresentação em Londres, Talin e Estocolmo.
Sebastião Salgado formou-se em Economia,
mas a paixão pela fotografia levou-o a arriscar uma carreira como
fotojornalista, em 1973. Trabalhou para as agências Sigma e Gamma e, em 1979,
passou a integrar a Magnum. Queria conhecer e dar a conhecer o mundo,
compreender as motivações dos homens, documentar uma sociedade em mudança – e
foi isso que fez nos últimos 40 anos. Depois de Trabalho, iniciado com as
fotografias na serra Pelada, dedicou vários anos aos livros Terra,
Êxodos, África e Génesis, entre outros projetos-causa. Da
militância fotográfica passou à militância efetiva, em 1998, ao fundar o Instituto
Terra (com a mulher, Lélia Wanick Salgado), promovendo a educação ambiental e a
recuperação da mata atlântica e das florestas da Amazónia. Venceu o World Press
Photo e o Prémio Príncipe das Astúrias, entre dezenas de distinções, e, em
2017, passou a ocupar a cadeira nº 1 das quatro existentes para fotógrafos na
Academia de Belas-Artes de França. Tem 75 anos e, apesar de ter casa em Minas
Gerais e em Paris, vive quase sempre em viagem.
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